Disputa entre prefeito e Escolas de Samba põe o Carnaval em risco
Quando em campanha, Marcelo Crivella reuniu-se com presidentes e diretores do Carnaval carioca, prometendo manter o valor integral da chamada subvenção, montante dado pela Prefeitura às Escolas de Samba para produzirem seus carnavais. Crivella afirmou à época que, independente dos problemas financeiros que pudesse vir a ter à frente da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, entendia que o espetáculo era uma das mais importantes – e lucrativas – manifestações populares do mundo.
Entretanto, o bispo não só voltou atrás numa promessa de campanha como mudou as regras no meio do jogo. Mantendo o sentido da metáfora, eu diria até que foi aos 45 do segundo tempo desse jogo.
Ele alegou que o dinheiro seria utilizado para construir creches.
Qualquer pessoa de bom senso razoável perceberia o quanto tal declaração é mal intencionada e que o verdadeiro intuito de Crivella com isso é desqualificar o Carnaval, criando um embate falsamente maniqueísta do “Bem contra o Mal”, entre as inocentes creches e as cruéis Escolas de Samba. Uma declaração cretina e demagógica de um prefeito que SABE que o Carnaval rende três bilhões de reais para a economia da cidade e garante milhares empregos formais e informais (números da Riotur), mas que precisa invariavelmente agradar seu eleitorado evangélico e seu gigantesco – e ainda expansivo – Mercado da Fé. Crivella tem tanto asco da cultura afro-brasileira que não tem sequer coragem de admitir o Carnaval como um dos negócios mais rentáveis do Rio de Janeiro.
E não é só o Carnaval da Avenida que vem sofrendo nas mãos do bispo. As pautas da agenda evangélica avançam incólumes na prefeitura. Há uma disputa clara pela hegemonia da cultura e das questões sociais da cidade. Antes do corte da subvenção, uma lei encurralou os eventos de rua – imobilizando coletivos culturais, rodas de capoeira, rodas de rap, blocos e outros segmentos livres –, e uma ação gradativa vem desestabilizando os órgãos criados em defesa das minorias.
Vale lembrar que, não faz muito tempo, Crivella estava numa missão na África exorcizando pessoas, expulsando demônios.
Ele e outros pastores chamavam os demônios de “Orixás”.
(Tem vídeo)
Percebe o quanto isso é grave? Não tem nada a ver com creche, queridx.
E mesmo que tivesse, não faria sentido nenhum, já que a prefeitura do Rio de Janeiro sempre arrecadou mais do que gastou com Carnaval. Daria para construir cinco vezes mais creches mantendo os desfiles. Carnaval não é só festa e nunca foi só gasto: é investimento.
O fator Dinheiro passa então a ser superficial. E o problema central passa a ser preconceito.
E a minha maior preocupação quando se mistura preconceito com altas cifras $$$, é que, para os dois lados saírem felizes nesse imbróglio, a solução “plausível” (e dá-lhe aspas quando digo plausível) seria manter os 2 milhões de subvenção para cada escola, mas esvaziar a cultura afro-brasileira da festa, impedindo enredos com temática afro ou que façam referência a Orixás, Povos de Rua, Umbanda ou Candomblé.
Escolas reagem. Mas é preciso refletir e repensar atitudes também
Ao que tudo indica essa é uma hipótese praticamente descartada, a de negociar restrições nos enredos. Principalmente porque a Liesa agiu rápido, optando pela suspensão do desfile de 2018. Ao se posicionar dessa forma, a Liga se coloca ao lado do capital nesse embate. Sem desfiles, a Liesa deixa claro para hotéis, pousadas, hostels, bares, restaurantes, companhias aéreas, empresas de turismo e outros setores – inclusive a Globo – que são R$ 3 bilhões a menos na conta e um milhão de turistas a menos nas ruas.
Boa estratégia. Porém, nos chama atenção para outros problemas: e o sambista? E o Folião? E o profissional do barracão e do ateliê?
E as pessoas apaixonadas por Carnaval?
No fim das contas, sambistas e evangélicos são apenas meros peões nesse tabuleiro de interesses.
Percebe-se o distanciamento dos sambistas para com as agremiações, quando se nota que quase não há mobilização popular em defesa delas. O capital garantiu o crescimento do espetáculo, mas fez as escolas perderem sua característica mais forte, que é a de representar suas comunidades de origem.
Era pro povo inteiro dizer que essa declaração sobre creches é completamente absurda, contudo, por conta desse afastamento, parece-lhes profundamente razoável que se invista em creches no lugar do Carnaval, duas coisas totalmente antagônicas. Foi se criando na cabeça das pessoas que Carnaval de Avenida é coisa de rico, de gringo, de bicheiro, de bandido. As agremiações e a Liga apostaram em um modelo de elite e, graças a isso, enorme parcela da população precisa se contentar com os ensaios de rua e os ensaios técnicos. Desfile mesmo, só na TV, na concentração ou na Intendente Magalhães. E olhe lá.
Ou seja, enorme parcela da população está cagando e andando para o corte da subvenção. Acaba vencendo o “apelo popular” cafajeste de que é melhor mesmo cortar.
Agora, não parece estranho que as Escolas de Samba ficaram mais ricas, mas perderam sua força?
As agremiações precisam recuperar suas posições de instituições representantes das comunidades, tornando-se novamente espaços de produção de cultura, construção de saberes e inclusão social. Espaços democráticos para as comunidades que ajudem a desconstruir a ideia rasa de que Carnaval não é cultura. É cultura SIM. Cultura popular, marginalizada, historicamente vista de forma depreciativa.
Não obstante, é preciso revisar as formas de gerir o Carnaval. Resumidamente, encontrar outras fontes de renda, depender menos de uma única emissora de televisão que faz o que quer, corta o que quer, mostra o que quer, filma apenas celebridades, efeitos especiais e gigantismos, deixando de lado o verdadeiro protagonista da festa, que é o Sambista por excelência. Que as agremiações entendam o real potencial do carnaval, e que essa crise sirva de exemplo para que os capitães do samba parem de aceitar migalhas.
A Liesa, por sua vez, precisa organizar debates amplos sobre o maior legado cultural do país. É o momento mais importante para fomentar discussões e encontrar soluções, principalmente porque os dois lados estão errados! Enquanto a Prefeitura é movida por interesses duvidosos, escoltada por um prefeito que possui uma visão preconceituosa sobre cultos de matriz afro-brasileira, as escolas também trilharam um caminho que virou uma armadilha.
Enquanto isso, o coro engrossa: é só Carnaval.
Só? SÓ?
Milhares de pessoas trabalham o ano inteiro no Carnaval. São 364 dias de preparo para 75 minutos, com muito sangue, suor e lágrimas. Escolas de Samba empregam cerca de 50 tipos de profissionais diferentes, entre sapateiros, costureiras, modelistas, aderecistas, peruqueiras, ferreiros, carpinteiros, pintores, desenhistas, escultores, decoradores e tantos mais. Só uma única escultura dá trabalho para quase vinte pessoas. Se é para discutir Carnaval, então que se saiba minimamente o que É o Carnaval.
Entendam de uma vez: não é só Avenida. Não é só desfile.
É emprego. É renda. É a única fonte de oportunidade.
É paixão. É vida. É o único instante de alegria.
Ou admitimos isso de uma vez e encaramos essa crise com objetividade ou vamos mesmo ter que pensar em outra coisa pra fazer em fevereiro de 2018.