Carnavalesco Leandro Vieira - Foto: Leo Queiroz

Barracões 2019 – Estação Primeira de Mangueira, um Museu de Grandes Novidades

Da série: Barracões 2019

Nossa caminhada pela Cidade do Samba continua. Dessa vez com um papo marcado com o carnavalesco da Estação Primeira de Mangueira, Leandro Vieira, idealizador de um dos enredos mais aguardados do ano.

“História Pra Ninar Gente Grande”, este é o título da viagem proposta pela Mangueira para desvendar as histórias que os livros não contam, os heróis esquecidos ou apagados do nosso sistema de ensino e formação como sociedade.

Vieira vem de um desfile contestador com a Mangueira, em 2018, quando contou a história do carnaval e o protagonismo popular dessa festa sem hierarquias, uma crítica direta às tentativas da prefeitura do Rio de esvaziamento dos festejos a partir de ordenamentos exagerados e cortes de verbas para a organização do evento. E o tom de enfrentamento às estruturas de poder lhe caiu bem. Muito provavelmente pelo casamento entre o discurso artístico e o pessoal, vez que Leandro se mantém integrado a discussões acadêmicas diversas na busca pelo conhecimento, bem como impávido em uma posição questionadora da realidade à sua volta. Tamanha sinergia entre o que o carnavalesco tem a dizer e o que a comunidade precisa falar despertou desde o anúncio do novo enredo uma grande curiosidade sobre os caminhos que seriam percorridos para contar o Brasil que não nos preocupamos em observar.

Sobre as estruturas em andamento persiste o segredo para a hora do desfile. Sem revelar o barracão, Leandro Vieira recebeu a equipe do Carnavalizados com muita simpatia para folhear o livro que pretende abrir para o público na segunda-feira de carnaval.

Para começo de conversa, apresentou suas inspirações e a forma como vem desenvolvendo o seu projeto:

“o enredo nasceu muito envolvido com a discussão do Escola Sem Partido (projeto do Governo Federal), porque essa ideia de apresentação de um viés educacional desprovido da possibilidade de levar alguém à reflexão crítica é a ideia da história do Brasil que nos nina, que nos coloca adormecidos diante daquilo que nos é ensinado. A história do Brasil oficial nega o protagonismo popular e nos coloca em uma posição inferior. Estamos sempre à espera de que alguém faça algo no nosso lugar. A gente tem um entendimento de que a história foi feita por alguém: não fomos nós, na condição de populares, que construímos.
A independência foi proclamada por alguém; a abolição dos escravos foi concedida e não conquistada. Tudo isso é fruto de uma narrativa que aos meus olhos pretende nos deixar ninados.”

Barracão Mangueira 2019 – Foto: Oscar Liberal

Somos ensinados, segundo seu raciocínio, a reproduzir sem refletir. Uma lógica de manutenção de um quadro social, dividido entre dominantes e dominados, à qual estamos submetidos. A voz da Mangueira surge em um momento importantíssimo para enfrentar o que é imposto. Uma busca por heróis de carne e osso que se empenharam na construção de um ideal de nação, de um contexto social harmônico. A escola, portanto, desvenda uma identidade nacional crível, preenchida por personagens excluídos em nome da valorização de uma elite.

A ideia do enredo da mangueira, nos conta Leandro Vieira, “é despertar diante das possibilidades carnavalescas uma consciência crítica que aponta o protagonismo de figuras populares, sobretudo índios, negros e pobres. E, assim, desconstruir o protagonismo de heróis de versões elitistas ou militarizadas”.

O carnavalesco nos fala sobre a necessidade de “pentear a história contra o pelo”. E explica que a conhecemos penteada para um lado, mas que podemos nos surpreender com as possibilidades históricas quando penteamos para o lado contrário do que foi ensinado. “Este é um caminho que vem sendo desenvolvido por historiadores e pode ser encontrado em muitas teses de mestrado e doutorado”, destaca. Mas o que incomoda o lado questionador de Leandro é a ausência desse conceito em um universo amplo, popular.

“No imaginário coletivo brasileiro nós ainda somos um povo que conta sua história a partir de 1500 e isso reduz demais a nossa percepção, nossa concepção de Brasil. Nós temos conhecimento comprovado arqueologicamente de que a cerâmica marajoara, por exemplo, é um artefato secular. E quando Cabral chega ao Brasil a civilização Marajoara já não existe mais. Ainda assim negamos essa história originária, o que é fruto dessa narrativa que nos foi ensinada, de negação das nossas origens indígenas”.

Em meio a tantos fatos contados sob a ótica de uma elite brasileira com exotismos europeus, questionamos o carnavalesco sobre como foi a escolha do que deveria ou não ser abordado em seu desfile, uma saída que a seus olhos sempre foi explícita:

“Os meus recortes são sempre simples aos meus olhos. Tento fatiar o meu desfile de uma forma compreensível. Ano passado eu contei a história do carnaval de uma maneira simples em 16 alas. Para este ano, os meus meios foram buscar quais eram os desprestigiados da história. Ao pensar nisso você encontra claramente dois grupos: índios e negros. Isso já me dá um enfoque, ora indígena, ora debruçado à estética negra e à história da negritude no território brasileiro. Uma outra questão é que se índios e negros foram desprestigiados no enfoque histórico, alguém foi privilegiado. Quem foi?! A elite traduzida em personagens ou da monarquia ou de círculos militarizados. Neste aspecto entra a Princesa Isabel, o Marechal Deodoro da Fonseca, o José de Anchieta, o Duque de Caxias, o Floriano Peixoto. Eu acabei setorizando tudo isso. E o desfecho é o povo brasileiro. Quem são os herdeiros diretos desses personagens desprestigiados? O povo brasileiro herdeiro direto disso tudo são os moradores das comunidades, na sua maioria, quase em sua totalidade, negros, mulatos, pobres e descendentes de nordestinos, que por sua vez tem uma descendência indígena absurda. E assim encontrei uma maneira de contar da forma mais clara possível e ainda me debruçando em um material que é o mais popular da história do carnaval, que é a história oficial do Brasil: navios negreiros, estética indígena, estética monárquica. Para mim é muito claro!”

A facilidade com que resume seu planejamento faz parecer realmente simples o entendimento de um enredo que, a princípio, parecia hermético, extenso demais para ser contado em pouco mais de uma hora de desfile. O que veremos na Mangueira é, portanto, um país construído pela sua gente. O que será realizado a partir da contestação ao que fomos submetidos até aqui. A história oficial, declara Leandro Vieira, “é uma história perversa, porque nega um protagonismo que seria traduzido em representatividade, que poderia ter formado um povo mais ciente do seu papel cidadão. Ela é contada com um interesse claro que não é verdadeiro, como a caracterização do índio pacífico, indolente, por exemplo. É uma coisa criada e que retorna ao pensamento no governo atual com interesses claros de desmerecimento”.

Interrogado sobre a importância artística em levantar esse tema para a comunidade, Leandro destaca que sua pretensão é

“propor para a Mangueira coisas com que ela se identifique e coisas que façam com que a escola assuma o seu papel de protagonista em assuntos eminentemente populares. Eu acho que este é o papel da Mangueira. Acho que é importante para ela a hipervalorização de suas tradições. Isto aconteceu em 2018 com o carnaval, que é a força que coloca a Mangueira numa posição de destaque absoluto, internacionalmente conhecida; e vai acontecer neste enredo de 2019, que fala da representatividade popular. O que pode ser mais importante para essas pessoas que uma representatividade pobre e negra na história do Brasil? Não tenho interesse em ser herói de nada, mas tenho interesse em contribuir para despertar uma consciência na comunidade que eu represento.
Desde o princípio eu tenho a preocupação de fazer do meu enredo uma aula de história, inclusive para os desprovidos do conhecimento escolar. O meu carnaval representa uma arma contra a falta de acesso que as pessoas da comunidade tem.”

O impacto do trabalho do carnavalesco na comunidade é visível. A força com que os mangueirenses abraçam seus temas e argumentos é admirável e desejável por qualquer agremiação. Uma energia que ele atribui ao fato de buscar “imbuir em seus enredos uma força intelectual que aquelas pessoas nem sabem que tem, mas que é urgente para elas saberem e cantarem. Quando eu proponho defender a história da cor da pele que elas carregam, aquilo é urgente, toca o coração de forma imediata”.

“Eu recebo diariamente gente lá do morro que descobriu quem era o Dragão do Mar, quem era Luísa Mahin, o porquê da menção a Dandara. Descobriram isso ouvindo o samba da Mangueira ou porque escutaram em uma entrevista e foram buscar quem eram esses personagens.”

O samba, aliás, tem vida própria. Com uma métrica diferenciada –curta e direta—, e uma letra de tirar o fôlego, tem garantido uma energia extra na quadra e nas ruas, vez que tem sido executado por blocos e músicos espalhados pela cidade. A referência à vereadora assassinada, Marielle Franco, faz com que muita gente utilize a canção para extravazar um grito preso na garganta. Sobre ele, Leandro Vieira não economiza elogios, nem esconde ter sido o seu favorito desde o início da disputa:

“Nós estamos em uma escola de samba. O protagonismo é do samba. Pena que nos últimos anos não tem sido assim. Ver uma comunidade como a Mangueira cantando ‘Brasil o teu nome é Dandara e tua cara é de Cariri’, é lindo!”

A conversa ia chegando ao fim, mas não poderíamos deixar de perguntar sobre a Comissão de Frente, comandada por Priscilla Mota e Rodrigo Negri, o badaladíssimo Casal Segredo, como são popularmente conhecidos. O casal, estreante na Mangueira, é sempre um dos momentos mais aguardados dos desfiles devido ao histórico de sucessos na Marquês. Leandro Vieira não esconde a satisfação de poder trabalhar com a dupla:

“Por vontade própria eu não me envolvo com Comissão de Frente. É um quesito com um artista à frente. Eu já represento 3 quesitos pesados: enredo, fantasias e alegorias e adereços. Mas este ano estou participando, por um pedido da direção da escola que eu me envolvesse. Inclusive a ida do casal para a mangueira partiu de mim. Teve o meu esforço pessoal de procurar o casal para conversar. E acabamos encontrando vários pontos de identidade. Está sendo maravilhoso trabalhar com eles.”

Dessa forma descontraída, mesmo com um impenetrável mistério, pudemos descortinar a essência do desfile da Mangueira, um novo retrato para um país de referências desgastadas, onde possa figurar em nossos museus o espírito gentil e guerreiro dos nossos heróis reais. Que a segunda-feira de carnaval traga boas lições de cidadania e aceitação.

Confira algumas imagens do barracão da Mangueira:

Leandro Vieira Cidade do Samba – Foto: Pablo Sander

Barracão Mangueira 2019 – Foto: Leandro Vieira/ Arquivo Pessoal

Perca tudo, mas não perca a cabeça – Barracão Mangueira 2019 – Foto: Oscar Liberal

Barracão Mangueira 2019 – Foto: Oscar Liberal

É na adversidade que a beleza mostra sua face mais preciosa – Foto: Leandro Vieira/ Arquivo Pessoal

Lilás e Laranja, uma solução para novas combinações de cores para compor o carnaval da Mangueira – Foto: Leandro Vieira / Arquivo Pessoal

Barracão Mangueira 2019 – Foto: Leandro Vieira / Arquivo Pessoal

Barracão Mangueira 2019 – Foto: Leandro Vieira / Arquivo Pessoal

 

 

 

 

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