Por: Ruan Rocha
Não é possível falar em Elza Soares sem pensar em representatividade. A voz rascante da mulher do fim do mundo não é mais áspera que seu discurso, suas palavras em defesa da pele negra, dos direitos, respeito e igualdade da mulher. Sua crença na sociedade plural sempre foi pontuada nos trabalhos, nas entrevistas. Nos últimos anos, como uma resposta à incapacidade de evolução da sociedade, visitou os extremos. As músicas que preenchem os últimos discos lançados são diretas, afiadas e afinadas com aquilo que acredita. Mulher de luta, colocou Exu nas escolas para combater a ausência da cultura negra nas salas de aula; pediu o celular para ligar para o 180 e gritar sobre a necessidade de lutar contra a violência sofrida pelas mulheres, crueldade de que foi vítima ao longo de uma vida conflituosa.
Na última sexta-feira (13) lançou seu mais novo álbum: Planeta Fome. Nele, que já é chamado por alguns críticos de “o melhor disco do ano”, escancara a desigualdade do Brasil, mas faz um aceno de esperança ao futuro do país. O título é resgatado da célebre frase que calou o menosprezo de Ary Barroso para aquela menina magricela das bandas de Padre Miguel, que invadiu e dominou o palco do programa de calouros apresentado pelo compositor de Aquarela do Brasil: “eu vim do mesmo planeta que o senhor, seu Ary. Do planeta fome”. Uma primeira aparição impactante e visceral, pequena amostra de tudo o que viria pela frente. Voz impossível de ser calada, o que fica evidente na canção, Mulher do Fim do Mundo, do disco homônimo lançado em 2015: “me deixem cantar até o fim” – brada a cantora.
Nada combina mais com o samba que a luta por espaço, por um lugar de fala, pela cultura e liberdade do corpo negro, sempre domesticado pelos preconceitos de uma sociedade de herança escravocrata. As escolas de samba são lugar de libertação, quebra das correntes. Elza Deusa Soares, enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel, é, portanto, a confluência entre a homenageada e a própria razão de existir de uma agremiação. Um encontro de longa data, pois com o carnaval a cantora fundiu sua carreira. Não precisa ser um amante de samba, afinal, para ter exaltado a verde e branco da zona oeste, repetindo em bom som os versos “salve a Mocidade”, eternizados pela voz que a BBC, em Londres, premiou com o título de Melhor Cantora do Milênio (2000).
E foi com toda essa força que no sábado (14), um dia depois do lançamento do excitante álbum de Elza, que a Mocidade abriu as portas do “Maracanã do samba” – sua quadra na Avenida Brasil—, para escolher a exaltação à deusa negra mulher. A comunidade, claro, aguardava ansiosa por este momento. O sonho de exaltar a filha de Padre Miguel, que levou o nome da escola e do bairro para vários cantos do mundo, finalmente tornou-se realidade. Com o momento social enfrentado e a intensidade do discurso da cantora nos últimos trabalhos, o tema veio no instante mais apropriado, como se observasse a hora certa para entrar em cena: para calar os preconceitos contra os negros e a violência e desigualdade contra as mulheres; para lutar contra as agressões à maior festa popular do planeta, construída sobre a ancestralidade africana – negra na cor, no sangue e na alma—, que incomoda o projeto de poder religioso que envenena a cidade do Rio de Janeiro.
Quatro obras chegaram à grande final programada pela escola. Há de se destacar a riqueza poética em torno dos quatro finalistas, o que comprova que a Mocidade vem inspirada e empenhada em dar o seu melhor. Quem desenvolve o enredo é o carnavalesco, Jack Vasconcelos, que apesar de ter chegado à Estrela Guia com o tema já definido, combina perfeitamente com o que Elza representa. Acostumamos, pois, a ver o carnaval crítico de Jack com brilho nos olhos. Uma sedução pela forma com que consegue transmitir uma mensagem importante sem deixar de iluminar a passarela e encher de alegria os corpos encantados pela intensidade do seu carnaval.
Para completar essa efervescência em torno do enredo escolhido só faltava o canto exaltação, que seria decidido, perante uma quadra lotada, entre as seguintes parcerias:
– Jefinho Rodrigues, Diego Nicolau, Marquinho Índio, Ricardo Simpatia, Jonas Marques, Richard Valença, Orlando Ambrósio e Cabeça do Ajax;
– Paulo César Feital, Domenil Santos, Denilson do Rozário, Léo Péres, Marcelo Casa Nossa, Alex Saraiça, Carlinhos da Chácara e Thiago Castro;
– Sandra de Sá, Igor Vianna, Dr. Márcio, Solano Santos, Renan Diniz, Jefferson Oliveira, Professor Laranjo e Telmo Augusto;
– Zé Glória, J.Giovanni, Fabiano Alcântara, André Baiacu, Paulo Ferraz, Beto BR, Dr. Castilho e Igor Leal.
Apesar da qualidade de todos os concorrentes, dois polarizaram a preferência do público desde o início da disputa: os sambas das parcerias de Jefinho Rodrigues e de Sandra de Sá. E de fato estes foram os de melhor desempenho na noite.
Primeiro a se apresentar, o samba de Jefinho e companhia apostou na luta e vitórias da homenageada. A torcida invadiu a quadra impactante, com bandeiras do movimento LGBTQI+, outras em defesa das mulheres e tantas com a frase “vidas negras importam”. Uma imagem valorosa de se ver em uma quadra de escola de samba, casa de um ritmo que nasceu e cresceu marginalizado por ser a voz de quem não deveria ser visto.
Apesar de contar com um canto forte e as atenções divididas, o apoio não foi suficiente para a avalanche provocada pelo samba da parceria de Sandra de Sá, que vinha apontado como um dos favoritos desde a primeira apresentação. As vozes de Igor Vianna e Wantuir completavam-se não só pelos seus companheiros de palco, mas por grande parte da quadra que, alvoroçada, abriu “os caminhos para Elza passar”.
Os sambas de Paulo César Feital e Zé Glória sofreram com a polarização entre as duas outras obras, enfraquecidos pela baixa adesão fora dos domínios de sua torcida, o que em nada reduz o trabalho dos compositores envolvidos. Apesar de sabermos que “samba enredo só ganha um” – como eternizou a canção de Wanderley Monteiro—, a Mocidade viveu uma madrugada iluminada, onde a poesia inundou a casa e os corações independentes. Uma disputa digna de um grande carnaval.
Na hora da decisão, não havia outro caminho a seguir. Estava clara a superioridade da obra encabeçada por Sandra de Sá, uma estreante em composição de samba enredo, que fez de seus olhos coloridos a visão da aquarela da Deusa Soares, mulher negra vinda do planeta fome, que alimentou de arte, poesia e luta o povo desnutrido de cultura e direitos dessa terra chamada Brasil.
Conheça a letra do samba que a Mocidade vai levar para a Marquês de Sapucaí em 2020:
Enredo: Elza Deusa Soares
Compositores: Sandra de Sá, Igor Vianna, Dr. Márcio, Solano Santos, Renan Diniz, Jefferson Oliveira, Professor Laranjo e Telmo Augusto.
Lá vai, menina
Lata d’água na cabeça
Esqueça a dor que esse mundo é todo seu
Onde a “água santa” foi saliva
Pra curar toda ferida que a história escreveu
É sua voz que amordaça a opressão
Que embala o irmão
Para a preta não chorar
Se a vida é uma “aquarela”
Vi em ti a cor mais bela
Pelos palcos a brilhar
É hora de acender no peito a inspiração
Sei que é preciso lutar com as armas de uma canção
A gente tem que acordar, da “lama” nasce o amor
Quebrar as “agulhas” que vestem a dor
Brasil, esquece o mal que te consome
Que os filhos do planeta fome
Não percam a esperança em seu cantar
Ó nega, “sou eu que te falo em nome daquela”
Da batida mais quente, o som da favela
A resistência em oração
“Se acaso você chegar” com a mensagem do bem
O mundo vai despertar, Deusa da Vila Vintém
És a estrela…
Meu povo esperou tanto pra revê-la
Laroyê ê mojubá… liberdade
Abre os caminhos pra Elza passar… canta Mocidade!
Essa nega tem poder, é luz que clareia
É samba que corre na veia
Confira algumas imagens da Final de Samba-Enredo Mocidade 2020: