A essência de Leandro Vieira em cores e Aquarela.
“Vamos todos
Numa linda passarela
De uma aquarela que um dia enfim
Descolorirá”
Toquinho, Aquarela.
Na ciência, a cor é considerada uma percepção visual provocada pela ação de um feixe de fótons sobre células da retina, que transmitem impressões para o sistema nervoso através de informação processada ao nervo óptico. Para o artista, no entanto, as cores têm efeito reverso: são elas as provocadoras de percepções. Para aquele que se debruça nas tintas em prol da arte, as cores servem para transmitir sentimentos. Transmitem alegria, dor, saudade. Euforia, melancolia. Prazer, inquietação.
Artistas são quase sinestésicos, ou seja, pessoas que conseguem “ouvir” as cores. Misturam sentidos e cruzam diferentes sensações pelo corpo. Escutam e apalpam aquilo que, na realidade, só se pode ver. E de forma singular, conseguem fazer com que as pessoas se sintam tocadas por suas coloridas obras. A virtuosa imaginação de artista se tinge de tonalidades e matizes, numa aquarela de ideias, pra despertar a imaginação e a emoção de quem assiste. Bastam a sensibilidade e uma extrema habilidade para trabalhar com as cores.
São infinitos tons e infinitas possibilidades de combinações. Estudá-las e encontrar os melhores arranjos é que é o grande desafio. Mas isso para o carnavalesco da Mangueira, Leandro Vieira, parece ser apenas mais uma de suas inquietações prazerosas habituais. Dono de uma paleta de cores que modernizou a Estação Primeira, o artista revela que chegar a esses resultados requer muito estudo e muita experimentação constantemente.
E dá muitas pistas sobre o que podemos esperar para o desfile da Verde e Rosa em 2018, as quais veremos aqui com versos de Aquarela. Aliás, Verde e Rosa e Azul e Lilás e Roxo…
.
E com cinco ou seis retas
É fácil fazer um castelo
É muito comum que se consiga identificar os chamados “traços” de um artista, quando analisamos suas obras em conjunto. São marcas que impregnam todas as peças produzidas por ele e criam uma identidade, uma sensação de similaridade entre elas. Tal similaridade denota a assinatura do artista, ou seja, a possibilidade de olhar uma obra e identificar quem está por trás dela. Não é uma questão de ser bonita ou feia; é uma questão de estilo. Todo artista busca seu estilo próprio. E seja desenhando castelos, mercados populares ou altares de igrejas, Leandro Vieira consegue imprimir sua assinatura.
Aquele que assistir em sequência os três desfiles da ainda curta – mas muito bem sucedida – trajetória do carnavalesco (o da Caprichosos de Pilares, em 2015, e os da Mangueira, em 2016 e 2017), conseguirá perceber determinados elementos que remontam a um estilo. Conseguirá, por exemplo, notar que as cores que Leandro utiliza são claras, os tons pastéis e bebês. Perceberá, em especial, o azul, muito presente no repertório criativo de composição da paleta de cores utilizada por ele no conjunto artístico das duas escolas. Até mesmo a Mangueira, com seu tradicional verde e rosa, teve de se render aos encantos do azul. Mas tudo, claro, tem explicação. Inclusive, uma explicação teórica convincente: de acordo com o carnavalesco, os desfiles servem de laboratório de testes e muitas das experimentações que fez podem se tornar suas marcas no futuro.
“No futuro só, pois acho que nenhum carnavalesco desenvolve um estilo em apenas três anos. Estou caminhando para a produção do meu estilo. Esse estilo que alguns carnavalescos têm que me fazem admirar o trabalho e assinatura deles enquanto artistas, como Rosa Magalhães e Renato Lage. Mas eu trabalho diariamente para ter meu estilo. Em determinado momento posso achar que não é isso, e posso mudar. Mas trabalho diariamente para anualmente tentar apresentar essa assinatura. E para produzir uma assinatura própria, faço uso de recursos plásticos que acredito que funcionem. Os tons pastéis, claros, por exemplo. O azul. Eu sempre usei muito azul. A Caprichosos tinha muito azul e é uma coisa que eu trouxe para a Mangueira.”
Um lindo avião rosa e grená
“São coisas ligadas a minha maneira de fazer”, começa Leandro. “Eu gosto de olhar e identificar essas nuances, essas combinações de cores. Ser carnavalesco da Mangueira me faz tentar produzir uma cartela de cores características em verde e rosa, em combinação com outras cores. O que talvez me diferencie aqui na Mangueira é que, enquanto os outros carnavalescos combinaram verde e rosa, eu faço a combinação do verde e rosa com outras cores. Diferente de carnavalescos como Max Lopes, que ficou durante muito tempo aqui, produzindo carnavais muito bonitos, utilizando várias nuances de verde e de rosa, eu inseri, por uma questão particular, outras combinações que tenho experimentado. A minha Mangueira pode ser rosa e vermelha, pode ser rosa e azul, rosa e laranja, verde e lilás. É uma combinação de cores nessa paleta que visa abrir ao verde e ao rosa novas possibilidades.”
A pátina, uma espécie de pintura que simula a oxidação das tintas e cria um aspecto artesanal antigo, desgastado pelo tempo, é uma das características presentes nos trabalhos de Leandro Vieira. Uma das alegorias da Caprichosos, em 2015, era toda feita com madeiras pintadas com a técnica de pátina. E ao Carnavalizados, Leandro revelou que o carnaval de 2018 terá um carro pintado com a técnica.
“Ela [a pátina] é uma coisa que está presente no meu carnaval porque sou pintor. Eu amo pátina. Deixa o visual final impregnado da presença de uma mão que pinta. É uma coisa que eu gosto, e uso muito nos meus carnavais. Inclusive para o carnaval de 2018 também teremos uma alegoria assim.”
De uma América a outra
Consigo passar num segundo
Assistindo aos desfiles da Mangueira em sequência – “Maria Bethânia: a menina dos olhos de Oyá”, de 2016, e “Só com ajuda do Santo”, de 2017 –, percebe-se que há uma sequência lógica, como se o desfile das superstições religiosas fosse uma continuação da homenagem à Bethânia. Leandro encerrou o desfile de 2016 com as mesmas cores e com a mesma estética que abriu o desfile de 2017. Ele garantiu que isso foi proposital.
“Nossa, vocês prestam atenção mesmo!”, disse ele, rindo. “Eu terminei lá pra começar aqui. Existem algumas coisas que o carnaval contemporâneo colocou como regra que eu não quero me render. A novidade virou uma regra do carnaval. Essa coisa do carnavalesco todo ano ter que surpreender. E eu não acho nada disso. De um ano pro outro continuo a mesma pessoa. Não mudo o que penso, não mudo o que faço. Não mudo nada. Então, essa questão do continuísmo, é simplesmente pelo fato de eu ser o mesmo todo ano. Independente da proposta, ela tem uma sequência lógica. Eu sou o autor. Sou o cara que tem a ideia e faz a pesquisa. Nisso de pesquisar, se absorve muito conhecimento. E no caso especifico de 2016 para 2017, a pesquisa histórica em torno da Bethânia, enquanto personagem, me levou a uma pesquisa muito mais profunda em relação a questão da religiosidade. E a religiosidade brasileira, pra mim, é uma das principais marcas da nossa cultura. Se tivermos que entender o povo brasileiro enquanto nação, o melhor caminho é tentarmos entender a sua religiosidade. Então, achei que seria uma tolice abrir mão do que eu já havia acumulado de pesquisas e experiência, em função de uma suposta obrigatoriedade de ser novo. Peguei o conhecimento adquirido na pesquisa de 2016 para fazer do carnaval de 2017 um aprofundamento. E eu resolvi de forma premeditada que essa transição seria colocar o visual do fim do desfile de 2016 permeando a abertura do inicio de 2017″.
“Só não cheguei exatamente a abrir 2017 com o fim de 2016 porque pulei o abre-alas, pois queria fazê-lo com ouro e vermelho”, detalha Leandro. “Eu quis abrir a Mangueira com um pouco de vermelho e dourado justamente porque no ano anterior eu tive uma ‘dificuldade’ com a questão do verde e rosa, de ter uma abertura sem as cores da escola, algo incomum pra eles. Era uma coisa que eles não compreendiam bem. Mas falei que isso não era uma obrigatoriedade. Então no ano seguinte, se a cabeça da escola fosse verde e rosa, eu iria me contradizer. Por uma questão de liberdade, não quis fazer essa concessão e resolvi que ia botar vermelho no abre-alas. Foi bem difícil conduzir tudo isso no início. Mas em 2017, usei um pouco mais de verde e rosa na composição. Agora, se repararem nas minhas alegorias, nenhuma era essencialmente verde e rosa. No desfile da Bethânia tinha até dois carros verde e rosa, mas o carro dela [o último] tinha bastante azul, elefantes azuis, cavalos azuis. Os cavalinhos rosas de 2017, são inclusive os mesmo cavalos de 2016; eles foram reaproveitados”, destaca.
Leandro Vieira tem nas mãos a paleta que muitos carnavalescos consideram como a mais difícil de trabalhar no carnaval. Agravante, a tradição da Velha Manga foi a de sempre utilizar diversas tonalidades das cores do pavilhão, o que causou certa desconfiança com a ousadia do carnavalesco no começo do seu trabalho.
“Essa questão do verde e rosa de fato é uma experiência, porque trabalhar com essas cores é muito difícil. Acho linda a combinação do verde e rosa, mas é muito difícil de combinar. Tem muitas nuances. O problema é que, na prática, não se encontra a mesma variedade que nas ideias. A variedade que nós temos de verde e rosa na hora de comprar material, tecidos, galões, passamanaria, paetês, é muito pequena. Muita coisa tem que mandar fazer, e muita coisa me obrigou a buscar fornecedores de outros materiais que me possibilitassem ter cores diferentes para combinar. Esse ano, inclusive, mandei fazer muita tinta. Ao invés de comprar tintas prontas, pedi combinações de rosa e de verde, que normalmente não se encontram. Tudo para produzir um visual mais harmônico. Mas isso é um problema sério na minha vida. Sou extremamente perfeccionista, mesmo sabendo que não posso fazer tudo perfeito. Isso me consome muito, tenho brigas constantes com meus fornecedores por uma tonalidade que peço e na reprodução sai outra, ou um tom abaixo ou um tom acima. Ou um tingimento numa pluma que quase sempre mando voltar para retingir, pois vem mais escuro ou mais claro. Não abro mão de tentar acertar a cor.”
Em meio às suas experimentações (e aos tristes dramas vividos com fornecedores de materiais), o artista detalha que encontrou no lilás uma grande solução para novas combinações de cores para compor o carnaval da Mangueira.
“O lilás foi uma das ótimas soluções que encontrei. Dependendo das nuances, ele fotografa rosa. E dependendo das tonalidades pode imprimir verde no azul, e isso gera um visual mais harmônico que o próprio verde e rosa tradicional. Às vezes, o rosa usado numa alegoria pode fotografar puxado para o carmim. A olho nu ele é rosa, mas pode ficar carmim, como é o caso até da bandeira da Mangueira. O rosa, se combinado com verde, fica quase um carmim, e isso gera um peso visual”, explica.
E se faço chover
Com dois riscos tenho um guarda-chuva
Como dizem no futebol, quando um jogador tem grande atuação, Leandro Vieira “fez chover”. Em apenas três anos tornou-se o carnavalesco sensação do momento, considerado um dos grandes talentos da nova geração. Tido como revelação em 2015, após o elogiado desfile da Caprichosos de Pilares, “Na minha mão é + barato”, o carnavalesco teve sua redenção no ano seguinte, sagrando-se campeão com a Estação Primeira, após um jejum de 13 anos da escola sem títulos, com o enredo sobre a cantora Maria Bethânia. Além disso, levou o Estandarte de Ouro de Melhor Escola pelos dois desfiles da Manga. O sucesso foi meteórico. E com tanta chuva que fez, o artista de 31 anos precisou fazer seu guarda-chuva – fortalecer a mente e fechar o corpo – para se proteger. Mesmo assim, ele afirma que sua relação com o trabalho o impede de se assustar com a rápida ascensão na carreira.
“É claro que me causou espanto ser convidado para ser carnavalesco. Me causou espanto ainda maior ser carnavalesco da Mangueira. Mas não me causa espanto o fato disso tudo ter acontecido assim, da noite para o dia, pois não tenho essa relação que me coloca como o Carnavalesco Campeão de 2016. Não, eu sou o Carnavalesco que Trabalha. Olhar para o trabalho dessa forma me coloca numa condição mais tranquila. Na verdade, eu não gosto nem quando dizem que tenho uma carreira. Quem tem carreira é a Rosa [Magalhães], o Renato [Lage], que fazem carnaval há muito tempo. Agora, se falar no período no qual trabalho com carnaval, sou a mesma pessoa nesses três anos. A maior parte do período foi como assistente, trabalhando nos bastidores da produção dos desfiles.”
O artista conta ainda que nunca passou pela sua cabeça ser carnavalesco.
“Nunca nem sonhei em ser carnavalesco. Me tornei carnavalesco por circunstâncias. O convite da Caprichosos foi uma circunstância de uma escola que estava com dificuldades financeiras, que não encontrava um carnavalesco renomado que aceitasse a condição que a escola enfrentava. O ambiente de trabalho, uma agremiação endividada, vista com descrédito na praça carnavalesca. Então, foi uma aposta da circunstância, né? Se a escola estivesse ótima, não teria apostado num cara que nunca tinha feito carnaval. Então a minha relação com o exercício de fazer carnaval sempre foi a de topar desafios. Gosto de fazer carnaval, não gosto de ser carnavalesco.”
Leandro ainda aproveitou para provocar a jovialidade do amigo Jorge Silveira, carnavalesco da São Clemente (em tom de brincadeira, claro)
“Eu sou o carnavalesco mais novo do Grupo Especial. O Jorge tem aquela carinha de adolescente, mas é mais velho que eu! Até me assustei quando ele falou que era mais velho”, diz ele, aos risos. “Enfim, eu me acho um carnavalesco muito jovem e ainda estou em fase de experiência com uma paixão. Sempre pensei em viver de arte, foi uma vocação muito clara desde a minha infância. Então, não vislumbrava o universo da figura do carnavalesco como feita pra mim. Mas procuro me impregnar das minhas coisas, das minhas convicções. E isso está em todos os meus carnavais.”
Sem pedir licença Muda nossa vida
E Depois convida A rir ou chorar
Leandro conta que produzir arte era a única possibilidade que enxergava para se realizar profissionalmente. Entrou para a Escola de Belas Artes da UFRJ para ser pintor e trabalhar com a arte dita mais tradicional. Pintava, apagava, refazia, pintava novamente… e construindo essa relação do “fazer” com a arte, o jovem talento foi moldando suas características artísticas.
“Essa relação de fazer e refazer arte hoje está presente na minha produção de fantasias, na minha produção de alegorias, da mesma maneira que o pintor enxerga a tela, da mesma maneira que o escultor enxerga o bloco de gesso ou que um ceramista enxerga a cerâmica. É uma relação íntima com o fazer. Para me sentir artista, preciso fazer. E me sinto menos artista sendo apenas um diretor.”
Contudo, não é apenas o fazer artístico que edifica a arte do carnavalesco da Mangueira. Em seus desfiles, é possível apreciar muitas miudezas, detalhes que vão desde os santinhos que guardamos na carteira aos tradicionais ímãs de geladeira, elementos que compõem um cenário que coloca o público dentro do desfile, resgatando pequenas memórias afetivas nas pessoas.
“Meu trabalho é fruto das comidas que como, dos lugares por onde ando, da música que escuto, das festas que frequento. O meu trabalho vai para além da pesquisa propriamente, tem muito das coisas que vejo e vivo também. Os santos de Bethânia saíram das celebrações populares, de todas que você possa imaginar. Já fui a todas. A própria Bethânia é a minha cantora favorita. O São Jorge tem as feições do São Jorge do Campo de Santana, porque é o São Jorge que me acostumei a ver. O balangandã do tripé tem uma figa vermelha, pois essa figa era do colar da minha mãe. A imagem de Santa Bárbara é a imagem de um ímã de geladeira que tem na minha casa. Ou seja, as coisas que seleciono pra fazer a produção visual das minhas alegorias são imagens próximas de mim, mas ao mesmo tempo próximas de muita gente. Para o carnaval de agora [2018], minhas fantasias são, sobretudo, soluções de coisas que vi no carnaval de rua. De carnavais dos quais participei, de modos de fantasiar-se para o carnaval que vi, os quais adaptei para a estética dos desfiles.”
Com alguns bons amigos
Bebendo de bem com a vida
Uma das características que mais chama atenção nos carnavais de Leandro Vieira, tanto na Mangueira quanto na Caprichosos, é que as fantasias possuem um ar mais teatralizado. São composições com mais camadas de panos e tecidos, esplendores menores…
E quase sem plumas. Leandro não gosta de plumas.
“As plumas remetem a um carnaval mais antigo”, ressalta ele, que já mostrou que usará algumas nas fantasias de 2018. “Mas tenho uma tendência a enxergar o carnaval como teatro. Só que o carnaval é um teatro com recursos próprios da estética carnavalesca, o qual tento imprimir nas minhas fantasias. Existe uma estética consagrada de carnaval que é o ‘Carnaval Cangalha’, que transforma o componente num cara que carrega uma fantasia. Ele não é um personagem, ele só carrega, no sentido de levar nas costas, o que o carnavalesco quer representar. E eu tento olhar para o cara que desfila pra mim como o cara que vai representar aquilo que quero dizer. Então, se a roupa é de um palhaço das cavalhadas, é ele quem será o próprio palhaço das cavalhadas. Por isso acabo tendo uma relação mais conceitual com a fantasia: ela é menos carnavalizada, no sentido de não carregar a representação nas costas, mas altamente carnavalizada, no sentido de proporcionar ao folião o contato com o lúdico. Pois vestir uma fantasia de carnaval é personificar aquilo que se quer representar. No meu carnaval do ano passado tinha muito isso, era o folião que se vestia de Santa Clara, era o folião que se vestia de São Francisco de Assis, era o folião que se vestia de São Jorge. Ele não carregava dragões nas costas; ele era o próprio São Jorge. E isso deixava o folião mais feliz, mais inserido no meu enredo.”
Desenvolver seu enredo e tornar o componente uma parte indissociável do desfile faz com que o carnavalesco da Verde e Rosa tenha extremo cuidado com a confecção das fantasias. De acordo com ele, aliás, produzir alas é a parte que mais gosta de fazer.
“Gosto muito mais de fazer fantasias do que fazer alegorias. Adoro fazer roupa de porta-bandeira, bateria e baiana. Acho linda, inclusive, a fantasia de bateria do ano passado. São as roupas que mais gosto de fazer. Geralmente são as primeiras a nascer. Aliás, gosto tanto de fazer fantasias que, se tirar todas as alegorias do meu carnaval, o enredo continua a ser contado do mesmo jeito sem elas.”
Basta imaginar e ele está partindo
Sereno e lindo
E se a gente quiser Ele vai pousar
Basta imaginar que os desenhos saltam do papel. Tal qual na música de Toquinho, um único pinguinho de tinta pode se tornar uma linda gaivota a voar no céu. No caso de Leandro Vieira, tanto a imaginação quanto a leitura clara e didática dos desfiles propiciam um entendimento mais fácil do público que assiste. Segundo ele, até mesmo elementos que não são do conhecimento de boa parte dos espectadores podem ser interpretados de maneira adequada, caso sejam bem trabalhados e representados pelos artistas da folia.
“A fantasia da Squel de 2016 tinha uma comunicação rápida. A maioria das pessoas não sabiam o que era, nem todo mundo tem conhecimento do que seja uma iaô Mas essas pessoas identificam a figura da iaô como alguma coisa ligada ao candomblé.”
“A ala das baianas passava e as pessoas gritavam ‘olha os saquinhos de Cosme e Damião!’”, relembra Leandro. “O pessoal das frisas gritando ‘Salve, Jorge!’ ou ‘Ogunhê!’ para a minha alegoria. As pessoas se emocionando com a porta-bandeira de Nossa Senhora da Aparecida. Essa comunicação ágil é muito importante. Eu preciso ser compreendido pelo público, pois só a compreensão do desfile pode proporcionar o envolvimento emocional do espectador com o que ele está vendo. Se você não se emociona com o que vê, você não está compreendendo o que vê.”
Um menino caminha E caminhando chega no muro
E ali logo em frente a esperar Pela gente o futuro está
Ainda que seja um dos principais artistas ativistas contra o sufocamento que a cultura e o carnaval vêm sofrendo com a prefeitura do Rio, Leandro parece não se abalar. A matemática, inclusive, é bem simples: a prefeitura deixou de dar um milhão, então a Mangueira vai fazer um carnaval um milhão de reais mais barato. Mas para um profissional que sabe trabalhar e produzir beleza com poucos recursos, o dinheiro, ao menos aparentemente, não fez falta e não alterou o planejamento inicial.
“Segundo o presidente da escola [Chiquinho da Mangueira], o carnaval campeão de 2016 é um carnaval um milhão e meio de reais mais barato que o carnaval produzido no ano anterior, no qual a Mangueira ficou em décimo lugar. Meu carnaval do ano passado já apontava para uma necessidade de reinvenção de alguns recursos. Chega uma hora que é preciso utilizar materiais alternativos. As penas artificiais que uso são uma solução estética mais barata em relação à pluma e que também geram esse visual de volume e conjunto. É preciso buscar soluções mesmo, o carnaval precisa dialogar com a sociedade e se reinventar.”
Em 2015, com o baixo orçamento que a Caprichosos dispunha para fazer seu desfile, Leandro teve que abusar da criatividade para conseguir colocar seu carnaval na Avenida. Apesar da dificuldade, o carnavalesco levantou a escola de Pilares e alcançou um honroso sétimo lugar. Uma das alegorias – a de pintura de pátina, inclusive – foi toda feita com sobras de madeiras das obras do Porto Maravilha.
“Aqui na Mangueira não tem necessidade disso, mas continuo trabalhando com materiais mais baratos. Não é simplesmente porque é barato, é porque gosto de produzir arte com materiais alternativos. Acho totalmente carnavalesco o cara que consegue pegar coisas em casa e ressignificá-las, Pegar o que tem armário, na cozinha e fazer uma fantasia. A estética das escolas de samba é mais aprimorada, mas a lógica é quase a mesma. O que Fernando Pamplona, Arlindo Rodrigues e Joãosinho Trinta fizeram, na época da consolidação da figura do carnavalesco, foi ressignificar pranchas, pratos plásticos pintados de prata, ráfia, palha. Objetos simples. Eu não acredito nesse modelo de carnaval que traz pronto de Las Vegas um negócio pra botar aqui. Acho que fica uma coisa inferior.”
Vamos todos
Numa linda passarela
Os profissionais da Mangueira podem ficar despreocupados: para o chefe, o trabalho é ótimo. Indo para seu terceiro carnaval no comando do barracão da Estação Primeira, Vieira afirma que seus colaboradores conseguem reproduzir exatamente as ideias de suas criações.
“Tenho uma tendência a enxergar o meu carnaval como um coletivo, por entender que uma obra é impossível de ser feita sozinha. Eu dependo desses outros artistas. O coletivo de arte. E nesse coletivo de arte, o resultado final tem que estar alinhado com a minha maneira de pensar o carnaval. São várias mãos, as do pintor de arte, as do escultor, do carpinteiro, do ferreiro. Todos são uma das minhas mãos. Então é preciso ter uma comunicação muito íntima com essas pessoas. Claro que isso se consegue com o tempo e com constância. Porém, hoje consigo ser entendido num olhar. Algumas vezes não preciso nem falar para que a pessoa saiba que aquele trabalho dela está aprovado ou não. Consegui uma afinidade artística muito grande com eles. Todos os profissionais que trabalharam comigo na Caprichosos continuam sendo os profissionais que trabalham comigo na Mangueira. São pessoas afinadas com a maneira que penso e a maneira como faço. Sabem fazer o carnaval na adversidade. E temos uma relação muito aberta de trabalho, sempre rola uma tentativa de consenso para encontrar soluções menos trabalhosas para tornar um trabalho mais rápido.”
Seu xará, Leandro Assis, o Mago dos Pincéis, que já foi entrevistado pelo Carnavalizados (veja aqui: http://carnavalizados.com.br/anonimosdocarnaval/leandro-assis-o-mago-dos-pinceis/), é uma das principais mãos do carnavalesco no processo de criação. Para Vieira, o pintor é fundamental para finalizar suas ideias. “O Lê é meu pintor de arte. E uma das coisas que mais mostra a qualidade dele enquanto artista, é que ele pinta a minha arte e a arte de Paulo Barros, dois trabalhos que não tem nada a ver um com o outro. Mas ele tem a capacidade de entender as necessidades do Leandro e as necessidades estéticas do Paulo. Somente um artista muito bom consegue ser dois”, elogia o chefe.
Nessa estrada não nos cabe Conhecer ou ver o que virá
O fim dela ninguém sabe Bem ao certo onde vai dar
O carnaval de 2018 será de muitas surpresas. O corte de verbas das escolas e a perseguição à cultura por parte da prefeitura, a crise do modelo econômico e estrutural pelo qual passam as agremiações, a obstrução da Cidade do Samba por falhas na segurança que atrasou cronogramas, além de mudanças internas nos barracões – com troca de carnavalescos e profissionais – são algumas das coisas que influenciarão no resultado dos desfiles que começam no próximo dia 11.
Logo, não nos cabe aqui fazer quaisquer tipos de previsões, nem projeções sobre favoritismo. A certeza que se tem é a de que grandes carnavais estão por vir. Talvez não carnavais gigantes, luxuosos, mas carnavais de resistência, da verdadeira essência de extravasamento da festa, que não precisarão de troféus para se tornarem históricos. Carnavais que ainda não saíram dos barracões, mas que já são ovacionados. Nesse caso, ganhando ou perdendo, Leandro Vieira presta um grande serviço ao mundo do samba e a todos nós, sambistas, e tem tudo para fazer um desfile antológico. Basta fazer com que suas cores toquem, mais uma vez, os corações da Sapucaí.
Excelente entrevista. Frequento a quadra ds Manga com certa regularidade e toda vez sinto uma vontade imensa de agradecer a esse profissional.obrigado Lenadro, obrigado mesmo pelo que vc fez pela Verde e Rosa. Parabéns!!