A Mocidade Independente de Padre Miguel finalmente anunciou, na noite desta terça-feira (27), o seu enredo para o carnaval de 2024. “Pede caju que dou… Pé de caju que dá!”, que será desenvolvido pelo carnavalesco Marcus Ferreira, e vai contar a história, lendas e curiosidades sobre o caju.
Enredo: “Pede caju que dou… Pé de caju que dá!”
- Carnavalesco: Marcus Ferreira
- Enredo: Marcus Ferreira e Fábio Fabato
- Sinopse: Fábio Fabato
Assumir completamente tudo o que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda desconhecido” – (Breviário do Tropicalismo, Torquato Neto)
Carne de caju
O poeta sempre mira a própria terra para trançar letras e alçar voos. Nada mais natural que ele e seus parceiros, além de tantas outras inspirações, buscassem uma fruta nativa, farta e com certo capricho corporal para explodir em cores toda a revolução tropicalista. Pudera! A suculência agridoce que seduz os lábios, diz a ciência, é mero penduricalho acessório. O fruto, no duro, está no alto, qual um cocar, black power ou coroa: a castanha. Mas quem é bobo de não se lambuzar com tudo?
No país de inversões igualmente marcantes e da arte que passou a transgredir e realçar o profundo da brasilidade, nosso recado carnavalizado tá na mesa: o redemoinho antropofágico da Tropicália cravou os dentes também em carne de caju. Yes, nós temos pra chuchu! A partir dele, simbora abocanhar o Brasil de tantas porções e sabores? Caldo de mel e travo, como o cotidiano, “o poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia. Resplendente, cadente, fagueira, num calor girassol com alegria. Na geleia geral brasileira que o Jornal do Brasil anuncia…”.
Quem não possui um cajueiro de copa verdinha no lado esquerdo do peito? Pinta de rim, mas convite ao pecado. Caju-de-árvore, caju-anão, caju-rasteiro, caju grandão e pequenino, caju amarelo, rosado ou pra lá de vermelho. Protagonista de soneto composto, quiçá, na banheira de Vinicius: “consistência de caralho e carrega um culhão na natureza”. O materialismo elementar pelo avesso. Que mancha, que arde, que abunda! Que chove. Exagerado e a prumo. Tupi acayu a pau.
Cajuí or not cajuí, that is the question! Faremos dele carnaval!
Anacardium occidentale
E vamos de mergulho no passado, contado em castanhas guardadas pelos povos originários. Cada caju na cabaça, uma primavera. O povo do índio Porã, expulso do lugar de origem, só encontrou felicidade quando floresceram as castanhas guardadas numa cabaça especial pelo sábio Tamandaré, seu avô, e que estavam perdidas. Veio a seguir o tempo de caju, de abundância, já que a “noz que se produz”, para além do beabá da Botânica, semeia fartura, memória e afeto. Nas cerimônias que envolvem o Torém, ritual sagrado dos Tremembés, os espíritos dos indígenas que cantaram para subir proseiam com os vivos. O entornar desbragado de mocororó, ou vinho de caju, rega a raiz das tradições – já que a festa esbarra na época de colheita.
Contam os sabidos que as tribos do interior buscavam o litoral enfeitado pelas árvores abarrotadas. As ditas “Guerras do Caju” surgem assim, e bem antes de Cabral, mas ganharam mais adstringência quando as treze naus apontaram no horizonte. Aí cresceu o olho gordo pra ordem de tonelada! O portuga logo melou os bigodões de interesse. O francês, mon amour, pôs na boca, nos bolsos e deu firma em célebre ilustração. Já ao dono real da terra… Bem, restou lutar – borduna em punho – contra as mumunhas do afanar institucionalizado, nosso amargor histórico.
E nem falamos do holandês, que também não marcou bobeira naquele fuzuê: Nassau tratou de legislar, pôs carimbo e remeteu aos seus como presentinho. Velas ao vento na contramão. Estava arranjada a invasão – o caju-desbravador a fazer epopeia com pose de Tupiniquim Caju Fruit Company – pelo inverso itinerário das grandes navegações. Retorno à vista! Brazilian Way Of Life natural reverenciado com rapapés e incrementado do lado de lá do oceano por monarcas e súditos.
Caju-rei
Mas se até o nada asseado D. João topava um banho de gato maroto na antiga Praia do Caju (para se curar das picadas por carrapatos), e Pedro II era retratado como Pedro Caju pelas charges dezenovistas… Quis o fruto erguer o seu reinado nas bandas de cá mesmo. Em Pirangi do Norte (quina litorânea superior do país), no ano da libertação dos escravos, um pescador de nome Luiz Inácio plantou o danado que vestiu a faixa de maior cajueiro do mundo.
No lugar de subir, a galhada espichou-se para os lados, com a aparição de novas raízes ao tocar o solo. Danou a crescer sem parar. O “polvo” potiguá de tentáculos cheirosos fez fama e enumera colheitas a sumir da memória, espécie de refazenda em trajetória interminável. Já o pescador com nome de presidente seguiu os dias sempre próximo à criação improvável. Certa vez, já velhinho, sentou-se prum descanso à sombra da árvore e nunca mais acordou. Mais um dos ciclos aromatizados pela planta-sentinela do litoral.
Tudo parecia mar calmo, só que pintou contestação. O típico duelo de meninotes de calça curta sobre quem ostenta o maior tronco. Recentemente, o auto coroado “Cajueiro-rei”, nas franjas do Delta do Parnaíba, tratou de reivindicar o alto da rampa de campeão da fita métrica. Ou seria quilométrica? No caso deste, há, ainda, uma lenda sobre trágico amor indígena a tiracolo: dizem que – cercados por mar de cavalos-marinhos, peixes-bois, tartarugas e golfinhos – dois guerreiros lutaram pelo amor da cunhã-poranga Jacira. Culminou em tragédia acompanhada de milagre.
Após a disputa, o perdedor emboscou o seu rival e a amada num passeio em que colhiam cajus. Duas flechadas, ambos mortos. Foi, então, que a tempestade plena de raios e trovões do dia seguinte produziu cena mágica: no exato lugar do enterro do casal, emergiu a planta de dimensão extraordinária. Alguém duvida?
O quiproquó entre os dois cajueiros inspirou torcidas organizadas, teorias rocambolescas da Biologia, um “mede aqui, mede acolá” ainda distante do apito do juiz. Mas enquanto não existe régua com o devido amém de ambos os lados, tudo é poesia para a castanha-commodity e seu pedúnculo famoso: seguem campeões de audiência entre paladares gringos e nossos. Autênticos reis do mundo. Reis à caju.
Caju-brasuca
Entre pelejas e causos da sabedoria dos povos – com delírios por excesso de caju fermentado nas ideias ou verdades incontestes – o filho legítimo dessa aldeia gigante grudou como “noda”. Expressão de memória coletiva, nos lábios de mel da literatura, economia musculosa, holofote dos anjos ou demônios que nos conectam ao sentimento e calorzinho de nação. Castanha-mátria, caju-pátria. Confidentes dos nossos profundos quintais interiores.
Nas curvas do destino e desatinos de Macunaíma, tão metáfora da vida brasileira, ah!, lá está o caju a marcar e serpentear os seus passos contraditórios. Acompanhante-anti-herói-espelho-meu. Caju-brasuca também na corda bamba com pincel na mão: a feira modernista de Tarsila em contraste com a “cica” memorial da melancólica aquarela de Debret a partir da escravidão. Haja caju para tantas camadas sobre tela! Telas, por óbvio, da mais pura vida real extraída do pé.
Tela do caju-caipi-pop, virado pra dentro industrialmente enquanto as pernocas inda não bambeiam: a própria enciclopédia dos amigos pós-doutores em língua enrolada. Consistente, cortadinho em rodelas, do prato e da polpa, sabor agreste e cerrado, que encanta o doce e o salgado. Para quem quebra castanha coletivamente – a própria alegoria da roda da vida –, gosto de pertencimento compartilhado. Laço. Ou mero pedaço, vá lá.
Tela do caju-família. Vitamina, crendice e mistura que nos inflamam. Das cantigas, do licor e do suco. “Goiabada para sobremesa…”. Refresco. Dedilhar na viola para evocar força e os antepassados. E até compota enfeitadinha, fita e tudo. Remedinho da mamãe. Receita passada como herança no caderninho amarelado que não se empresta nem ao melhor amigo. Sujeito-elo entre a rua e a varanda. Toalha de mesa estendida com água na boca. Pinga. Para participar de brincadeira popular e religiosa: da quermesse à curimba, do sambão ao batidão na esquina de casa.
Tela do caju-moleque. Com travessa de cajuzinhos a perfumar a vivência dos mais experientes: “quando você ia aos cajus, eu já voltava com as castanhas assadas”. Virou também recado reto para o vacilão que resolve brigar de bobeira: “ei, vai tomar caju!”. E segue o bloco! Que contorna a praça e abraça o velho cajueiro, debruçado na fuzarca como bom anfitrião namorador. Rostinhos colados à malemolência do cancioneiro, o fim de festa traz o beijo da morena tropicana, vejam só. Pele macia, saliva doce, sim, vou lhe desfrutar. “Ô, iô, iô, iô”…
Geleia geral
Natural que a geleia geral de sabores acima tenha, de fato, a própria alma da Tropicália, e aí pensamos outra vez no poeta: “existirmos a que será que se destina?”. A dúvida existencialista em meio à ambivalência do fruto-não-fruta parece extrato nosso chupado de canudinho com aquele barulhinho sacana. Ora, existimos para a vocação de fazer cultura popular e da riqueza exuberante da terra, inda que descuidadas. Eis que o Brasilzão mira a água cristalina do velho Atlântico e lá está peladão e sem vergonha: é o seu próprio fruto jamais proibido. Travesso um tanto, travoso para tantos, “totoso” no total.
Que mistério tem o corpo continental que goza flora como fogos de artifício e se entorpece da energia do povo na loucura de ser? Salada mista de gritos ambulantes que vendem e consomem fertilidade, é mascate de prazeres até o talo. A alquimia desengonçada do rapaz metido a gato-mestre na barraca de caipirinha: “com açúcar, dotô?”. Somos vida cajuína mergulhada em delirante cortejo made in sol e mar, desfile na areia, curvas de sereia, sumo e pegada.
Um viva ao paraíso tropical que tudo dá e ao estado de festa indomável na relação entre gentes e chão – o melhor caju do pé de Brasil. Ou seria o melhor Brasil do pé de caju?
Alegria gaiteira, convenhamos, já muito experimentada no terreiro fervido dos independentes. Basta “olharmo-nos intacta retina”:
Na cabeça, uma estrela. No corpo macio, o rebolado passista e a pulsação do tambor. Que tal a suculência da carne de carnaval, o salivar permitido, lamber os beiços sem qualquer pingo de culpa?
Cá estou, “cajuinamente”, servida de bandeja com a dose de feitiço que me fez banquete desejado desde moça.