Sinopse do enredo:
Cheiro de pólvora perfumando as ventas. O parabelo carregado e a bala cortando os ares. O calango rabisca o chão, a boiada se inflama, o cavalo galopeia aperriado. O rifle balança como menina na mão do cangaceiro. A faca talha. Fura. Mata gente.
O cabra grita, o suor desce pelo gibão de couro. O líder do bando canta e os bandoleiros se colocam a arrastar as chinelas. A poeira laranja sobe sobre o xique-xique ainda verde. Criança de colo corre. O gato late. O cachorro solta um miado fino e a turma se põe a xaxar. Xaxando, me ponho a contar, nome por nome do time que Lampião comandava: tinha Corisco e tinha Dadá. Tinha Pilão Deitado, Beato e um homem brabo, com nome de cobra, vulgo Jararaca, que, ao morrer, dizem ter virado santo. Tinha também Graúna, Zé Baiano, Azulão e Cirilo Antão. Não me perdoo se esquecer o nome de Cansanção. Canário, companheiro de Adília, Pé de Peba e Pé de Pato. Pajeú, Volta Seca e Zé de Julião. Juntos, essa turma esquentava como pitú com pimenta ou o sol que arde, queima e castiga o sertão. Arruaça, rebuliço, Deus nos acuda e, no meio disso, reluz – como a chama do candeeiro – a estrela de Salomão, que brilha no chapéu de um cangaceiro, rei e capitão.
Contado nas palavras rimadas do cordel, cantado pelas cordas das violas do repente, tema para o gracejo do boneco mamulengo. Ele tá na boca e na reza dos beatos; nos aboios dos vaqueiros; na bagagem dos tropeiros; no motivo da lágrima que molha o rosto da carpideira. Tá lá o nome dele: Virgulino Ferreira da Silva. Vulgo Lampião, que morreu aos quarenta anos tiroteado numa emboscada que lhe separou a cabeça do cangote, no raiar de um dia vinte e oito, quando o calendário marcava o mês de julho, no ano de 1938.
Morto, Lampião foi direto aos portões do inferno. Morada do Encardido, Capiroto, Arrenegado, Peba, Excomungado. De nome Filhote e sobrenome Danado. A casa do Tinhoso onde pensava ser tratado e aceito como bom moço. Barrado no portão, fedendo a enxofre, montado em seu cavalo – agora, só de osso – se aperreou com a demora pra entrar, fruto da discussão com um diabo ainda moço.
O certo é que Satanás, dono daquela morada, por saber de quem se tratava, não queria confusão. Se desse ingresso a um cabra com a fama de Lampião, logo, sem demora, lhe chegava a desmoralização. Diante da negação, Virgulino Ferreira se inflamou e, acredite o senhor ou não, fogo no inferno o sujeito tocou.
Em brasa, morreu pra mais de cem cão queimado. Morreu Desgraça Pouca e Bananinha. Morreu Propina. Morreu um cão chamado Preguiça. Morreu Luxúria e Avareza. Saudades deixou o cão Safadeza. Gemendo, morreu Ypsilone. Em chamas morreu Furico. Morreu Belzebu muito apreciado por Satanás.
Sabendo do alvoroço, o Bicho ruim mandou chamar Lubisome, gritando por Aucapone – este, com o pau da prensa – gritou por Ritlê e Moléstia. Veio uma Diaba boa e braba chamada Quem Me Dera. Uma velha, famosa como Língua de Sogra. Soltaram a Onça Caetana da coleira e foram, com a tropa armada, pro meio do tiroteio, onde o cacete batia, o filho chorava e a mãe não via. Em boa luta, pra mais de duas horas, Lampião ainda de pé, com uma caveira de boi, arrebentou um cão, puxou do oitão, incendiou o mercado e lançou brasa no armazém de algodão. Prejuízo sem tamanho, matemática de se danar: perdeu-se todo o dinheiro que o Diabo ganhou com a rachadinha, queimou-se o livro de ponto, o Excomungado perdeu pra mais de vinte contos e Lampião, vendo que não era bem quisto, teve de se retirar.
Com a má-querença do excomungado, Capitão Virgulino montou-se nos costados de um azulão e arribou rumo ao portão do céu. Naquela morada, de cadeado bem trancado, bateu palmas dizendo querer entrar. Foi então que Pedro, santo carrancudo, largou do café que bebia, pra ver quem, na santíssima morada, queria estadia.
Sem crer no que via, São Pedro tratou de enxotar Lampião. Na mão esquerda, sua chave; na direita, um papel de pão. Nele, escrito toda sorte de judiação: filho da gota serena, ladrão, furador de bucho e assassino ferino. Amancebado, marcador de gente, bandoleiro perigoso metido com rapariga. É pirangueiro que bulinou mulher casada. Meteu galho na testa do pai de família.
“Não seja dedo-duro”, respondeu Lampião e, com o rifle na mão, fez a exigência: “me leve até o pai, pois é ele quem sabe de tudo. Sou filho do homem. Por ele parido e não sou bastardo. Tu até parece brabo, mas, nessa santíssima mansão, tu não manda, tu é mandado”.
Diante da ousadia, São Pedro tocou o sino. Vejam vocês, chamou uma tropa de anjo menino. Mandou São Jorge selar o cavalo e ordenou a São Gonçalo Ivo: “Chame Antônio e São Miguel. Chame também por Gabriel. Diga a Santa Rita que venha. Apresse Nossa Senhora da Penha. Diga à Bárbara que cesse a macumba; que São Longuinho apareça; que João menino traga o triângulo e a zabumba”.
A santaria veio num pinote. Lampião corria, parecia uma festa junina, quando ele então, pendurou-se num balão e clamou ser levado à presença de “Cíço” Romão. “Isso é golpe baixo”, berrou São Judas Tadeu, interrompido por Santa Luzia que lhe advertiu: “Se tem padrinho, não morreu pagão. Deixe que o balão suba e leve o moço até os aposentos de Padre Ciço Romão”.
Lampião bem que tentou. Padim Ciço advogou. Mas São Pedro, o pé não arredou: “és um sujeito malcriado e o diabo também não lhe quis. Desça daqui pra terra. Vá vagar pelo sertão. Torne-se assombração, mas suma, antes do fim do barulho de meu trovão”.
Mal quisto no inferno e sem a guarida do santíssimo, Lampião desceu à terra em busca de alguma morada. Astucioso, querendo a eternidade, o homem que em vida perdeu o coco para ser sabedor do que havia depois da morte, queria habitar agora o quengo que pertencia aos outros.
Primeiro, andou fazendo assombro ao abrigar-se por de trás do dente canino e pontiagudo de uma carranca que navegava no São Francisco. Na sequência, foi morar no breu do olho direito e cego de Patativa do Assaré. Esteve abrigado na sombra de cada palavra dita e escrita pela pena do poeta. Em dia de festa, esteve de tocaia na sanfona de oito baixos de mestre Januário. Durante anos, seu paradeiro foi o gibão de Luiz Gonzaga. Com ele, foi ao Sudeste, ao rádio, exibiu-se na televisão. Esteve sob a coroa de couro de outro rei, o do baião.
Astucioso, buscando uma morada que não lhe fosse perene, deixou-se amassar pelas mãos de Vitalino. Misturou-se então – pra sempre – nas entranhas de corpos sem osso e sem costela. Tá em toda sorte de gente, ainda hoje, feito de uma mistura que cozinha um bocado de barro mágico, pouca água e o fogo que arde feito o sol desfeito em brasa.
Pesquisa, desenvolvimento e texto: Leandro Vieira.
*Inspirado nos Cordéis “A Chegada de Lampião no Inferno” e “O grande debate que teve Lampião com São Pedro” de José Pacheco.