O giro do Carnavalizados pela Cidade do Samba continua. Dessa vez, visitamos o barracão da União da Ilha do Governador. A escola insulana prepara o enredo “Nas encruzilhadas da vida, entre becos, ruas e vielas, a sorte está lançada: salve-se quem puder!”. Quem falou com a nossa equipe sobre os preparativos para o carnaval e sobre como esse enredo vai se desenvolver na avenida foi o carnavalesco Fran Sérgio, que comanda, ao lado de Cahê Rodrigues, a comissão de carnaval da agremiação. O time de carnavalescos conta também com quatro jovens talentos formados pela própria escola, uma ideia de renovação e continuidade do experiente diretor Laíla, que investe no novo para garantir o futuro da festa.
A chegada de Laíla à União da Ilha movimentou a escola. Com sessenta anos de experiência em uma carreira vitoriosa e respeitada, o diretor de carnaval representa a busca da União por um refinamento técnico capaz de lhe conferir melhores colocações nos desfiles. Após uma trajetória de mais de duas décadas à frente da Beija-Flor, período em que a comunidade nilopolitana viu seu pavilhão crescer e vencer repetidas vezes, Laíla fez uma breve passagem pela Unidos da Tijuca em 2019 e agora aporta na Ilha do Governador com a missão de iniciar uma nova fase para a história insulana.
O primeiro capítulo deste novo momento reforça os pilares de uma escola de samba. Com um enredo que olha para as comunidades cariocas como espaços que necessitam de atenção, mas que são cheios de esperança e solidariedade, a Ilha dá voz e convida sua própria comunidade para construir um olhar sobre as mazelas e as alegrias que cruzam os becos, que sobem e descem as vielas dos morros do Rio de Janeiro.
Para evitar o olhar exótico sobre a favela, Laíla apostou na criação livre e coletiva. Para o enredo criou-se um título, mas a sinopse foi gerada ao longo do processo e divulgada só no último mês, de modo a valorizar o olhar principalmente dos compositores, que tiveram liberdade para criar os sambas concorrentes sem um conteúdo rígido ditando os caminhos que deveriam percorrer. Uma experiência ousada que remete aos antigos carnavais, em que o samba era o fio condutor do trabalho das escolas.
A iniciativa parece ter dado muito certo. Fran Sérgio mostrou-se muito satisfeito com a forma com que a ideia do diretor de carnaval ajudou a moldar um desfile a partir do olhar de quem vive a realidade que vai ser apresentada.
“Essa ideia veio do Laíla, da vivência que ele tem de comunidade carente. É um enredo que parte dele e que a gente foi construindo ao longo do tempo. Em vez de sinopse nós fizemos alguns textos, que foram passados para os compositores. A gente também queria colher dessas pessoas as vivências do dia a dia delas. E assim o enredo foi sendo gerado como uma gravidez.
Os textos traçavam uma direção, mas a gente queria realmente a contribuição do compositor. Por isso demos liberdade total para eles falarem do seu dia a dia. O resultado é que a todo momento vemos acontecer uma coisa referente ao que vamos tratar.”
Por falar em gravidez, é a partir do olhar gestante de uma mãe preocupada com o futuro do filho que está por vir que a União da Ilha vai contar sua história.
“A gente abre o desfile com uma grávida, negra, pobre, da favela. E ela imagina como será o futuro do filho naquele universo. O samba é a voz dela: é o tempo inteiro ela clamando por justiça. Essa mulher vai cruzar toda a escola. Ela abre o desfile e vai até o final.”
O olhar crítico que o time de carnavalescos tenta construir é uma reflexão sobre o descaso com as comunidades: lugares de pessoas que lutam diariamente, trabalhando muito, se espremendo em ônibus e trens lotados, mas sem ver uma mudança na sua realidade, porque a educação continua ruim, da mesma forma como a saúde e outras áreas fundamentais para uma vida digna.
“É um carnaval com um peso maior. Tem a leveza e a alegria da Ilha, mas fala de uma coisa séria. Toca na ferida realmente, mas não ataca ninguém de forma direta. É uma crítica ampla, de um modo geral: o ataque é aos poderosos, a quem tem o poder de fazer e não faz. É uma grande reflexão. Todo mundo passa por essas coisas, mas na favela é pior porque a balança social ali é pesadíssima.”
Entretanto, nem só de tristezas vivem as comunidades. Muito pelo contrário. Os carnavalescos enxergam na alegria dos moradores da favela a chama da esperança que os mantém de pé, prontos para uma nova batalha a cada dia.
“O enredo da Ilha é muito a vida da gente. A encruzilhada que a gente fala são os caminhos que nós encontramos e muitas vezes não sabemos qual escolher para termos uma vida melhor.
A gente, então, termina o desfile com uma ponta de esperança, porque a única forma que nós temos de passar por esses problemas todos e sobreviver é através da solidariedade, da amizade. É isso que acontece nas favelas: a festa na laje, o churrasco, as festas de aniversário. A comunidade tem essa alegria, essa união. Nós encerramos o nosso desfile com as festas, que são a forma de sobreviver, através do samba, do pagode, do funk.”
Com um carnaval dividido em cinco setores, Fran Sérgio garante que o projeto tem vários pontos de destaque, mas que a equipe acredita que o centro do desfile vai despertar grande atenção do público, por trazer uma alegoria tão bonita quanto crítica, que escancara o problema sem perder o deboche característico do carnaval.
Sobre as reduções implementadas pela LIESA para este carnaval, o carnavalesco não vê este modelo com menos alegorias e componentes como o ideal, mas como um paliativo para a crise financeira que as escolas vem enfrentando.
“Eu acho que tinham que ser sete setores. Eu gosto de sete. É o meu tamanho ideal. Um espetáculo tão bonito não pode ser castrado.”
Apesar de ver a redução como uma ordem natural frente às dificuldades enfrentadas pelas agremiações, o que mais entristece o carnavalesco que acumula quase três décadas de experiência é a drástica redução do número de profissionais envolvidos ao longo de toda a escala produtiva do carnaval.
“O carnaval gera muito emprego. A falta de verba prejudicou, desempregou, muita gente. Nós tínhamos muito mais gente trabalhando na área: gente que hoje não está mais aqui. Hoje nós não podemos contratar, não temos dinheiro.”
Traduzindo em números, Fran Sérgio revela que o barracão da Ilha este ano conta com um grupo de 120 a 130 funcionários, uma quantidade que em um passado próspero chegava a 250 profissionais contratados. Perde o carnaval e a economia carioca, com a degradação da subsistência de muitas famílias que relacionavam seu sustento aos barracões espalhados pela cidade.
Quanto à comissão de carnaval formada, Fran Sérgio mostra-se satisfeito com a forma com que o grupo se relaciona. Prestes a completar 27 anos ao lado do diretor, Laíla, famoso pela forma exigente com que conduz seus trabalhos, vê em seu novo parceiro, o também carnavalesco, Cahê Rodrigues, um estilo semelhante ao seu, de modo que não tiveram dificuldade em somar seus olhares no desenvolvimento de todos os setores.
“O Cahê é muito tranqüilo, como eu. A gente pensa junto, pensa parecido, e isso é muito bom porque fazemos do nosso trabalho um somatório. Não dividimos nossos afazeres em escalas. Além de dividirmos os problemas também, porque hoje em dia não é fácil fazer carnaval”, finaliza Fran Sérgio.
Renovação e Continuidade
Completam a comissão de carnaval quatro jovens profissionais com vivência na União da Ilha, que foram convidados por Laíla para dar um frescor às ideias e para garantir que o carnaval seja um espetáculo de vida longa, com novos artistas sendo formados todos os anos.
Moradores da Ilha do Governador, Larissa Pereira, Felipe Costa, Allan Barbosa e Anderson Netto passaram a integrar o time criativo da União da Ilha desde maio, quando iniciados os preparativos para o carnaval de 2020. Larissa, Allan e Anderson, além de desfilantes da escola mãe, trazem em seu currículo a execução de carnavais da escola mirim insulana, a Cavalinhos Marinhos da Ilha, fundada em 2014. Felipe Costa, também integrante da comunidade, teve passagem como estagiário de Laíla e Fran Sérgio na Beija-Flor de Nilópolis.
Dedicado à área de pesquisa, Anderson Netto não pode estar presente durante a nossa visita, mas pudemos conversar com os demais para desvendar a sensação de estrear no carnaval carioca na escola de coração e ao lado de profissionais tão experientes e qualificados.
Larissa Pereira
Aos 35 anos, Larissa Pereira é formada em moda e trabalha como estilista desde que investiu na carreira. Sempre foi muito ligada ao carnaval. Moradora da Ilha, desfila há anos na União, sua escola do coração. Sua iniciação profissional se dá na Cavalinhos Marinhos, a escola insulana mirim, com a qual vai para o seu terceiro carnaval.
“Lá na Cavalinhos Marinhos a gente tem uma Comissão de Carnaval também. O Anderson, o Allan e eu participamos dela. O Anderson fica na parte teórica, de pesquisa. Eu já sou mais a parte criativa, de desenho, das fantasias; e o Allan é o responsável pelo nosso carro alegórico. Lá eu fui fazendo essa transição de carreira. Comecei a ver que era isso que eu queria da minha vida”.
Sobre o convite recebido para integrar a comissão de carnaval da União da Ilha, Larissa não economiza elogios:
“Meu coração é só gratidão. Ter a oportunidade de aprender com o Laíla é sensacional. Ele é uma pessoa muito generosa, ensina muito para a gente. Só tenho a agradecer por estar participando com ele, com o Fran Sérgio e o Cahê, que são profissionais incríveis que acrescentam muito no nosso crescimento profissional. Para mim ainda não caiu a ficha. Eu ainda estou no processo do trabalho. Vai cair a ficha no momento do desfile”.
Durante o desfile, a jovem carnavalesca não deve segurar a emoção. Algo que sempre foi visível como integrante da comunidade deve ficar ainda mais evidente vendo seu trabalho cruzar a Marquês de Sapucaí.
“Eu sempre fui uma componente muito emotiva. Todo ano fico emocionada, sempre entro chorando. Então não sei como vai ser no dia”.
Sobre os profissionais que lhe serviram de inspiração no carnaval, Larissa revela:
“Eu cresci aprendendo sobre carnaval com o Laíla e a Rosa Magalhães. Eu aprendi muito de história assistindo aos desfiles da Imperatriz. Eu acho a Rosa brilhante Sempre tive muita admiração pelo trabalho, pelo cuidado dela. E para mim é muito bacana ter uma mulher à frente do carnaval. Uma mulher com tanta expressividade. Ela sempre foi referência, tenho muitas lembranças detalhadas de desfiles que ela fez”.
Felipe Costa
Aos 26 anos, Felipe Costa diz querer trabalhar com carnaval desde os 12. Com esse objetivo, ingressou e se formou em figurino pela Escola de Belas Artes, um grande celeiro de artistas que encantam o público na Sapucaí. Com a faculdade viu surgirem outras oportunidades em teatro e em TV, mas o sonho de estar no carnaval manteve-se vivo. Com isso, acabou fazendo um estágio na Beija-Flor de Nilópolis, onde trabalhou com Fran Sérgio e Laíla, hoje à frente de sua escola de coração.
“Eu já tinha estagiado com o Laíla e o Fran Sérgio na Beija-Flor. Logo que me formei, soube da vinda deles para a Ilha e mandei uma mensagem para o Fran, sem grandes pretensões, mas ao mesmo tempo querendo estar aqui. Foi muito bom saber que ele lembrava de mim. Marcou uma reunião e eu comecei essa jornada na Ilha .
O curioso dessa história é que a minha primeira oportunidade no carnaval tinha sido com eles, em um estágio na Beija-Flor, e agora de fato, em uma carreira pós-faculdade, com as mesmas pessoas.
Fazer parte dessa equipe de carnaval é extremamente gratificante. Além do que é emocionante estar em um processo de começo de uma carreira carnavalesca dentro da minha própria escola. A gente teve uma oportunidade de ouro, que não aparece a qualquer hora. O Laíla pensa muito na continuidade da festa. Essa preocupação dele abriu as portas para nós aqui”.
Sobre o convívio e os aprendizados com Laíla, Fran e Cahê, Felipe revela:
“Apesar da bagagem acadêmica, o carnaval é uma faculdade à parte. É um universo muito incrível de aprendizado. Detalhes que vão se revelando a partir da vivência mais intensa”.
Felipe Costa também nos revelou seu ídolo dentro do maior espetáculo do planeta:
“Tem uma pessoa que eu persigo em termos de linguagem, que é mais do que um ídolo: o Joãozinho Trinta. Ele é sensacional em termos de ideias”.
Allan Barbosa
O caçula da comissão de carnaval da União da Ilha tem apenas 19 anos de idade e já carrega uma experiência adquirida na Cavalinhos Marinhos. Cursando o quinto período de Cenografia na Escola de Belas Artes, foi na agremiação mirim que Allan deu os primeiros passos.
“Minha história no carnaval começou quando eu tinha 14 para 15 anos, quando fundaram a Cavalinhos. Eles ministravam oficina para carnavalesco. Eu me inscrevi com o intuito de chegar para aprender sobre carnaval, mas o coordenador teve uns problemas no caminho e quem assumiu o carnaval fomos eu e mais dois meninos. Com 15 anos assinei meu primeiro carnaval e segui na escola até 2018”.
Para Allan, a rotina dentro de um barracão sempre foi um sonho e um objetivo. Hoje satisfeito, comemora a primeira grande oportunidade em uma escola do grupo especial do carnaval carioca.
“O meu amor pelo carnaval vem desde muito criança. Sempre brinquei de montar desfile de escola de samba, sempre soube que era nisso que eu queria trabalhar. Mas o convite do Laíla foi muito inesperado: eu esperava vir para fazer um estágio. Quando ele falou que eu seria da comissão de carnaval foi uma surpresa maravilhosa, porque é um sonho realizado”.
Como os colegas de barracão, Allan também nos contou suas maiores referências dentro da festa:
“Eu tenho duas grandes referências. Uma é o Renato Lage: eu escolhi fazer cenografia por conta dele. Sempre tive uma paixão por alegorias e sempre achei os carnavais do Renato deslumbrantes. A outra referência é mais recente: o Leandro Vieira”.