Sete escolas de samba cruzaram a Marquês de Sapucaí na última noite de desfiles do carnaval carioca. O tom crítico foi a marca do segundo dia de apresentações do Grupo Especial, uma tendência que tem conquistado novos públicos, além daqueles que sempre perceberam o samba como um espaço para debater falhas e dar voz àqueles que estão postos à margem do universo social dominante.
A São Clemente abriu a noite com uma releitura do enredo de 1990, E o Samba Sambou, uma espécie de autocrítica que avalia negativamente a mercantilização dos desfiles das escolas de samba, o que apaga a importância cultural do evento para transformá-lo num grande espetáculo para uma audiência alheia à riqueza e simbolismos presentes nos cortejos. O carnavalesco Jorge Silveira apostou em um universo pop, colorido e iluminado. E conquistou a Sapucaí! O ponto alto foi a comissão de frente, que retratou as polêmicas viradas de mesa do carnaval.
Segunda escola a se apresentar, a Unidos de Vila Isabel desceu a Serra e levou a cidade de Petrópolis para a Sapucaí em um desfile primoroso. Fantasias e alegorias luxuosas e bem acabadas, esculturas grandiosas e com movimentos, bateria afiada… A Vila deixou o povo de boca aberta, com o sabor de um grande espetáculo à sua frente. Aos olhos do público a única falha foi o estouro do tempo em um minuto, o que pode lhe custar uma boa colocação.
A Portela foi a terceira escola a entrar na avenida com o enredo mais esperado de sua história: uma homenagem a Clara Nunes. A carnavalesca, Rosa Magalhães, optou por alinhar a homenagem a um olhar modernista sobre Madureira, o que não foi bem recebido por parte do público, mas o samba que a azul e branco levou para a Sapucaí ajudou a águia a alçar voos maiores, conquistando o canto da comunidade e das arquibancadas.
Outra simbiose parece não ter rendido bons frutos. Foi o caso da União da Ilha do Governador, que retratou o Ceará a partir das obras de Rachel de Queiroz e José de Alencar. O destaque do desfile ficou por conta do Padre Cícero voador da comissão de frente.
Retomando a crítica política e social que lhe conferiu o vice-campeonato em 2018, a Paraíso do Tuiuti defendeu o enredo O Salvador da Pátria, que conta a história de um bode que foi eleito vereador em Fortaleza em 1922, como um ato de protesto da população contra o cenário político do período. O carnavalesco, Jack Vasconcelos, apostou numa aproximação entre passado e presente para mostrar que o bode continua a lutar contra os mesmos personagens que se mantém no poder no Brasil. Apesar de empolgar o público, a escola teve problemas com um de seus carros alegóricos na concentração, o que atrapalhou a sua evolução.
Com a política posta na mesa, foi a vez da Mangueira levantar-se em tom de protesto. O enredo História para Ninar Gente Grande propôs uma reflexão sobre a história do país que os livros não contam, destacando o protagonismo de negros, índios e pobres na construção Brasil: os verdadeiros heróis, ainda que excluídos das versões oficiais sobre o passado da nação. O conjunto alegórico e de fantasias foi impactante, mas o grande destaque do desfile ficou por conta da força do samba que a verde e rosa levou para a avenida. Uma obra que certamente vai entrar para a história do carnaval. Um desfile de tirar o fôlego.
O encerramento do carnaval ficou por conta da Mocidade Independente de Padre Miguel. Em uma noite em que a reflexão foi a personagem principal, o enredo Eu sou o Tempo, Tempo é Vida, pareceu descolado daquela realidade, apesar do belo desfile que fez. Retratar a relação do homem com o tempo através da história poderia ter maior relevância em outro contexto. Mas a escola desfilou depois de uma Mangueira mergulhada em argumentos e com um discurso incisivo, que foi da concentração à dispersão ganhando força. A Mocidade certamente saiu prejudicada pela posição do desfile, pois lhe faltaram argumentos para conquistar o encanto depois que o desfile anterior sacudiu até o mais adormecido dos espectadores.