Foto: Ana Branco/Agência O Globo

Os dois lados (errados) da queda de braço de uma crise anunciada

Disputa entre prefeito e Escolas de Samba põe o Carnaval em risco

Quando em campanha, Marcelo Crivella reuniu-se com presidentes e diretores do Carnaval carioca, prometendo manter o valor integral da chamada subvenção, montante dado pela Prefeitura às Escolas de Samba para produzirem seus carnavais. Crivella afirmou à época que, independente dos problemas financeiros que pudesse vir a ter à frente da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, entendia que o espetáculo era uma das mais importantes – e lucrativas – manifestações populares do mundo.

Entretanto, o bispo não só voltou atrás numa promessa de campanha como mudou as regras no meio do jogo. Mantendo o sentido da metáfora, eu diria até que foi aos 45 do segundo tempo desse jogo.

Ele alegou que o dinheiro seria utilizado para construir creches.

Qualquer pessoa de bom senso razoável perceberia o quanto tal declaração é mal intencionada e que o verdadeiro intuito de Crivella com isso é desqualificar o Carnaval, criando um embate falsamente maniqueísta do “Bem contra o Mal”, entre as inocentes creches e as cruéis Escolas de Samba. Uma declaração cretina e demagógica de um prefeito que SABE que o Carnaval rende três bilhões de reais para a economia da cidade e garante milhares empregos formais e informais (números da Riotur), mas que precisa invariavelmente agradar seu eleitorado evangélico e seu gigantesco – e ainda expansivo – Mercado da Fé. Crivella tem tanto asco da cultura afro-brasileira que não tem sequer coragem de admitir o Carnaval como um dos negócios mais rentáveis do Rio de Janeiro.

E não é só o Carnaval da Avenida que vem sofrendo nas mãos do bispo. As pautas da agenda evangélica avançam incólumes na prefeitura. Há uma disputa clara pela hegemonia da cultura e das questões sociais da cidade. Antes do corte da subvenção, uma lei encurralou os eventos de rua – imobilizando coletivos culturais, rodas de capoeira, rodas de rap, blocos e outros segmentos livres –, e uma ação gradativa vem desestabilizando os órgãos criados em defesa das minorias.

Foto: Facebook

Vale lembrar que, não faz muito tempo, Crivella estava numa missão na África exorcizando pessoas, expulsando demônios.

Ele e outros pastores chamavam os demônios de “Orixás”.

(Tem vídeo)

Percebe o quanto isso é grave? Não tem nada a ver com creche, queridx.

E mesmo que tivesse, não faria sentido nenhum, já que a prefeitura do Rio de Janeiro sempre arrecadou mais do que gastou com Carnaval. Daria para construir cinco vezes mais creches mantendo os desfiles. Carnaval não é só festa e nunca foi só gasto: é investimento.

O fator Dinheiro passa então a ser superficial. E o problema central passa a ser preconceito.

E a minha maior preocupação quando se mistura preconceito com altas cifras $$$, é que, para os dois lados saírem felizes nesse imbróglio, a solução “plausível” (e dá-lhe aspas quando digo plausível) seria manter os 2 milhões de subvenção para cada escola, mas esvaziar a cultura afro-brasileira da festa, impedindo enredos com temática afro ou que façam referência a Orixás, Povos de Rua, Umbanda ou Candomblé.

Escolas reagem. Mas é preciso refletir e repensar atitudes também

Ao que tudo indica essa é uma hipótese praticamente descartada, a de negociar restrições nos enredos. Principalmente porque a Liesa agiu rápido, optando pela suspensão do desfile de 2018. Ao se posicionar dessa forma, a Liga se coloca ao lado do capital nesse embate. Sem desfiles, a Liesa deixa claro para hotéis, pousadas, hostels, bares, restaurantes, companhias aéreas, empresas de turismo e outros setores – inclusive a Globo – que são R$ 3 bilhões a menos na conta e um milhão de turistas a menos nas ruas.

Boa estratégia. Porém, nos chama atenção para outros problemas: e o sambista? E o Folião? E o profissional do barracão e do ateliê?

E as pessoas apaixonadas por Carnaval?

No fim das contas, sambistas e evangélicos são apenas meros peões nesse tabuleiro de interesses.

Percebe-se o distanciamento dos sambistas para com as agremiações, quando se nota que quase não há mobilização popular em defesa delas. O capital garantiu o crescimento do espetáculo, mas fez as escolas perderem sua característica mais forte, que é a de representar suas comunidades de origem.

Era pro povo inteiro dizer que essa declaração sobre creches é completamente absurda, contudo, por conta desse afastamento, parece-lhes profundamente razoável que se invista em creches no lugar do Carnaval, duas coisas totalmente antagônicas. Foi se criando na cabeça das pessoas que Carnaval de Avenida é coisa de rico, de gringo, de bicheiro, de bandido. As agremiações e a Liga apostaram em um modelo de elite e, graças a isso, enorme parcela da população precisa se contentar com os ensaios de rua e os ensaios técnicos. Desfile mesmo, só na TV, na concentração ou na Intendente Magalhães. E olhe lá.

Ou seja, enorme parcela da população está cagando e andando para o corte da subvenção. Acaba vencendo o “apelo popular” cafajeste de que é melhor mesmo cortar.

Salgueiro -Desfile 2017 – Fotos: Fernando Grilli /Riotur

Agora, não parece estranho que as Escolas de Samba ficaram mais ricas, mas perderam sua força?

As agremiações precisam recuperar suas posições de instituições representantes das comunidades, tornando-se novamente espaços de produção de cultura, construção de saberes e inclusão social. Espaços democráticos para as comunidades que ajudem a desconstruir a ideia rasa de que Carnaval não é cultura. É cultura SIM. Cultura popular, marginalizada, historicamente vista de forma depreciativa.

Não obstante, é preciso revisar as formas de gerir o Carnaval. Resumidamente, encontrar outras fontes de renda, depender menos de uma única emissora de televisão que faz o que quer, corta o que quer, mostra o que quer, filma apenas celebridades, efeitos especiais e gigantismos, deixando de lado o verdadeiro protagonista da festa, que é o Sambista por excelência. Que as agremiações entendam o real potencial do carnaval, e que essa crise sirva de exemplo para que os capitães do samba parem de aceitar migalhas.

A Liesa, por sua vez, precisa organizar debates amplos sobre o maior legado cultural do país. É o momento mais importante para fomentar discussões e encontrar soluções, principalmente porque os dois lados estão errados! Enquanto a Prefeitura é movida por interesses duvidosos, escoltada por um prefeito que possui uma visão preconceituosa sobre cultos de matriz afro-brasileira, as escolas também trilharam um caminho que virou uma armadilha.

Imperatriz Leopoldinense/2016 – Foto: Mauro Pimentel

Enquanto isso, o coro engrossa: é só Carnaval.

Só? SÓ?

Milhares de pessoas trabalham o ano inteiro no Carnaval. São 364 dias de preparo para 75 minutos, com muito sangue, suor e lágrimas. Escolas de Samba empregam cerca de 50 tipos de profissionais diferentes, entre sapateiros, costureiras, modelistas, aderecistas, peruqueiras, ferreiros, carpinteiros, pintores, desenhistas, escultores, decoradores e tantos mais. Só uma única escultura dá trabalho para quase vinte pessoas. Se é para discutir Carnaval, então que se saiba minimamente o que É o Carnaval.

Entendam de uma vez: não é só Avenida. Não é só desfile.

É emprego. É renda. É a única fonte de oportunidade.

É paixão. É vida. É o único instante de alegria.

Ou admitimos isso de uma vez e encaramos essa crise com objetividade ou vamos mesmo ter que pensar em outra coisa pra fazer em fevereiro de 2018.

 

 

 

 

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