A história nos remete à de Nossa Senhora Aparecida: um cristo negro que emergiu das águas pelas mãos de pescadores e encheu de esperança e fé todo um país. O Cristo Negro de Portobelo – distrito do Panamá—, mescla religião e raça. Uma história mítica que criou um dos objetos de devoção mais singulares do cristianismo.
A verdadeira origem do Cristo Negro é desconhecida. Segundo a lenda, em 1658, um escravo negro pescava na cidade de Portobelo quando viu um objeto flutuando. Retirado das águas, revelou-se a figura de um Cristo, com a dor estampada no rosto. O que o diferenciava das imagens conhecidas era o fato de, como o pescador, ser negro. O que elevou sua devoção foi o desaparecimento, desde a sua chegada, de uma praga que assolava a região. Um milagre atribuído ao achado santo. O início de uma fé que perdura até os dias de hoje.
Com o enredo A Fé que Emerge das Águas, a Estácio de Sá vai estender em cores na Passarela do Samba a história do povo panamenho, da fé e da mistura das três raças: o branco, o índio e o negro. O Cristo negro é cercado de simbolismos: surge das águas no país em que o homem uniu dois oceanos em uma obra tão monumental quanto inacreditável. Por meio de um canal o caminho foi aberto e as eclusas nivelaram o Pacífico e o Atlântico. Uma construção moderna, inaugurada em 1914, conhecida como um dos mais relevantes feitos da engenharia, que transformou a história das trocas comerciais no planeta.
A ideia do enredo, curiosamente, partiu da Rainha do Carnaval do Rio de Janeiro, Jéssica Maia, que agora ocupa o posto de rainha da bateria Medalha de Ouro, comandada por Mestre Chuvisco. Em uma conversa informal com a assessora de imprensa da escola, Jéssica falou dos dez anos em que viveu no Panamá e da sua paixão pelo lugar. A assessoria levou ao carnavalesco Tarcísio Zanon, que mergulhou em um trabalho de pesquisa em busca de um elo histórico ou cultural para contar a história desse país. Um trabalho de equipe, em que contou com a ajuda do jornalista, Daniel Targueta, responsável pelo desenvolvimento da sinopse.
Zanon encontrou no Cristo Negro uma narrativa de fé e devoção capaz de unir o panamenho ao estaciano. “Apesar de não ser um enredo brasileiro ele se comunica diretamente com o Brasil e com o povo carioca, porque a nossa fé é muito parecida com a deles. Aqui nós temos a nossa mãe negra que emergiu das águas”, declara o carnavalesco.
“Assim como existe esse encontro de águas dos oceanos Pacífico e Atlântico, também vai haver um encontro de fé entre Nossa Senhora Aparecida e o Cristo Negro, só não posso falar como, porque é uma surpresa”.
Sobre possíveis investimentos vindos do país homenageado, o carnavalesco declarou: “questões de apoio financeiro eu não sei dizer, porque eu não participo. Só participo do desenvolvimento plástico de enredo. Mas que nós estamos tendo manifestações de carinho, de pessoas querendo vir desfilar, vir para o carnaval, disso não tenho dúvida”.
Uma comitiva formada por Zanon, o presidente, Leziário Nascimento, a rainha, Jéssica Maia, e a assessoria de imprensa da Estácio acaba de voltar do Panamá. Durante a viagem contaram com o suporte ilustre da cantora Érika Ender, que está sendo uma madrinha na relação que a agremiação vem construindo no país. Érika, que é filha de mãe brasileira, é coautora do mega sucesso internacional, Despacito. A cantora e compositora convocou toda a imprensa do país para apresentação do projeto de carnaval da escola. Segundo Tarcísio Zanon, o apoio que ela vem dando tem despertado forte interesse dos panamenhos e de pessoas de outros países pelo trabalho desenvolvido. “Eu fico extremamente feliz porque isso divulga o nosso país lá fora, divulga a Estácio – que é o berço do samba —, e a nossa cultura para outros países”, afirma. Com todo esse interesse e curiosidade, o carnavalesco já tem uma ala destinada aos panamenhos que virão para o desfile: “só que eu acho que uma ala vai ser pouco, porque o Panamá está parado com esse enredo”, brinca empolgado.
Perguntado sobre problemas como a perda de barracões por agremiações da Série A e a falta de investimento público no desenvolvimento do carnaval, Tarcísio Zanon é enfático: “meu presidente é um guerreiro! Não só o presidente, como a direção de carnaval desta escola. A gente passa por dificuldades como qualquer outra, do Acesso e do Especial. O que eu costumo dizer é que quando existe uma equipe unida, uma escola com vontade de fazer arte, a gente consegue fazer. Mas está sendo muito difícil a forma como o governo, as autoridades, tem olhado para o carnaval. Isso tem que mudar porque a gente passa por problemas sérios: problemas que comprometem, inclusive, a saúde dos profissionais, porque a gente trabalha com estruturas completamente precárias. Isso precisa mudar!
Para esse caldeirão de história, fé e esperança a Estácio abriu suas portas na noite de sábado (15), a fim de escolher o samba que vai dar voz ao seu enredo. Quatro obras disputaram a preferência da comunidade que se orgulha de ser um berço de ouro do samba. Apresentaram-se as parcerias compostas por:
– Alexandre Naval, Edson Marinho, Tinga, Jorge Xavier, Luiz Sapatinho, Cláudio e Álvaro Roberto;
– Wilsinho Paz, Filipe Medrado, Diego Tavares, Marcio de Deus, Danilo PS, Marcelão da Ilha e Marco Moreno;
– Jacy Inspiração, Sergio Gil, Lucas, Lee Santana, Maurício Alves, Hermeson e Fernando de Lima;
– Daniel Gonzaga, Igor Ferreira, Marcelinho Moreira, Edson Português, Ari Jorge, Rogério Soares e China do Estácio.
Uma disputa extremamente equilibrada por quatro composições de qualidade, que cortaram a noite fazendo a alegria do povo do Estácio, que lotou a quadra. Já amanhecia o domingo quando o intérprete, Serginho do Porto, assumiu o microfone para o anúncio oficial.
Com uma apresentação de destaque que levantou a torcida e o público, o samba da parceria de Alexandre Naval foi anunciado como o grande campeão da noite. Dali em diante a festa tomou a quadra e se espalhou pelas ruas do Estácio. Uma demonstração real de que o carnaval já começou.