Martinho e Tunico da Vila - Foto: Arquivo Pessoal

Griô Martinho José Ferreira, reserva de memória da cultura de matriz africana

Por: Tunico da Vila

Vibrações transmitidas… Detalhes afetivos contornados, sons registrados, tradições e rituais preservados. Foi a observância, o olhar, a escuta. As experiências pessoais e coletivas. O narrar, o cantar, o contar as histórias de povos e o sincretismo.

Transforma-se Martinho da Vila no porta-voz dos silenciados afro-brasileiros.

Rememorar o evento que trabalhei no canhão de luz, que organizado por ele, depois de algumas viagens por aquele país. O Canto Livre de Angola que revelou de forma pioneira a cultura africana para o Brasil em meados dos anos oitenta. “O projeto foi encantador, porque deu oportunidade para os brasileiros assistirem ao trabalho dos angolanos, coisa que nunca tinha acontecido no Brasil. Foi emocionante”, lembra Martinho da Vila.

E aí me veio na mente a canção o “Semba dos Ancestrais”, que traduz rituais, toques, danças, evoca o simbólico, a ancestralidade. Meu pai torna-se um importante agente político, pedindo a liberdade de Mandela, que esteve preso por décadas. Ao compor ou cantar, ele preserva tradições, costumes, ou seja, possibilita a reflexão sobre questões importantes acerca da nossa memória e identidade. Dá voz aos irmãos, negros do Brasil e da África. Para os que foram negado o direito de reivindicar uma identidade diferente da imposta, que têm suas vozes caladas, excluídas e exiladas. E ele foi e vai agindo como mediador entre a história do negro e a sociedade.

Oriundo da região Serrana do Rio de Janeiro, a hospitaleira e musical Duas Barras. Filho de um lavrador e de uma rezadeira de ladainha, nasce em pleno carnaval de trinta e oito, às seis da manhã, ladeado pelo verde e os instrumentos musicais, como o acordeon do vô Josué Ferreira, que trabalhava na lavoura de café da região. Por lá, os calangos aconteciam em torno de uma fogueira, devido ao clima frio do lugar. Apaixonado pelos sons de sua terra natal, o pai levou por diversas vezes as bandas de Folia de Reis para os seus shows e para a nossa casa no Grajaú. Cantou e gravou calango, sambas de roda, mineiro- pau. A canção angolana “À volta da fogueira”, gravada por ele, traduz liberdade, infância e reafirma a sua dupla ligação Brasil- África.

“Os meninos à volta da fogueira
Vão aprender coisas de sonho e de verdade
Vão perceber como se ganha uma bandeira
E vão saber o que custou a liberdade”

Ele que não seguiu a profissão do pai, sai da pequena cidade para a labuta, lavrando música na boêmia Vila Isabel, bairro do tangará Noel. Faz do azul celeste da escola de samba, sua bandeira. Que também é a cor da serenidade, do mar… Filho de Omolú e Iemanjá, traço uma similaridade de sua fama de devagar e calmo. Da sua trajetória de percorrer os trilhos do trem que o levaram para o Rio de Janeiro. As trilhas sonoras e seus oito filhos. As músicas e os livros, filhas e filhos também. Meu pai foi arrimo de família quando vó Teresa ficara viúva. E minha avó impulsionou o único filho homem para a lida, para a vida. “Foi a mão de Deus que te lapidou. Para amar seu filho do jeito que for”, canetou ele e Beto Sem Braço.

O pai alçou, é Embaixador Cultural Honorário de Angola no Brasil, Comendador da República em Grau de Oficial e Ordem do Mérito Cultural pela contribuição à cultura brasileira, é Embaixador da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLT). Escreveu quinze livros, entre poesias, livros infanto-juvenis, com temáticas étnicas, políticas, histórias de família e crônicas, sendo o último “Conversas Cariocas”, lançado neste ano. E como contador de histórias nas suas músicas, estabelece um jogo com os ouvintes, em que sua presença é marcada por sua voz e também pela sua performance, que envolve ritmo, gestos e entonação.

A arte de ser contador de história não é simplesmente recordar, mas tornar um fato passado como um evento presente, no qual todos participam tanto o narrador e os ouvintes. Ele vai mais, deu vida à onze enredos, através das composições de seus sambas-enredos. Só disputando na Vila Isabel e na Aprendizes da Boca do Mato. Martinho seria um griô contemporâneo. Narra, conta, descreve, agita e transforma. Os primeiros griôs preservavam suas tradições e costumes, através da arte de narrar, cantar e recitar oralmente.

Já o griô pós-moderno por excelência assume diversas faces. Deixou de ser ágrafo e apropriou-se das formas de expressão contemporâneas. Em 2013, ele pensa e escreve o samba-enredo que deu o último campeonato da Vila. O samba que ficou conhecido como Festa no Arraiá. Em sua trajetória frutífera, compôs a música “Axé pra todo mundo” para o centenário da Abolição da Escravatura. Reuniu músicos, artistas e lideranças do movimento negro em horário nobre. É desse homem que falo, do intelectual e do popular Martinho. Do seu legado vivo e completo.

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O pai completa cinquenta anos de carreira e oitenta de vida. Vida plena, produtiva, de entrega. Sua arte e sensibilidade serão exaltadas na avenida em São Paulo, onde começou sua história musical, com o III Festival MPB da TV Record em 1967. “Eu nasci no Festival da Record de 1967”, disse ele. O compositor representou a cidade com a canção “Menina Moça”. Venerado, é considerado por muitos o Rei do Samba e na sua Vila, o Negro Rei. Por tantas missões realizadas com louvor, precisamos celebrar Martinho e as nossas próprias raízes.

Bença pai! Axé Martinho José Ferreira!

 

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