Excluindo as notas descartadas (que não entram na pontuação final), bateria Soberana perdeu décimo em 2016; Pura Cadência não perde pontos desde 2011
As baterias da Beija-Flor de Nilópolis e da Unidos da Tijuca são as melhores orquestras do samba da década de 2010. Sob a batuta dos mestres Rodney/Plínio e Casagrande, respectivamente, a Soberana e a Pura Cadência perderam apenas um décimo entre 2010 e 2019 — excluindo as notas descartadas, que não entram na pontuação final.
Mesmo levando em consideração todas as notas do julgamento, incluindo a pontuação de descarte, as duas baterias tiveram excelente desempenho. Dos 420 pontos possíveis nos 10 anos, a percussão da escola de Nilópolis perdeu apenas 0,9 pontos. Uma pequena vantagem em relação à orquestra do Borel, que perdeu 1,2.
Vantagem que, para mestre Rodney, regente da bateria da Beija-Flor, não deve ser vista como rivalidade, briga ou competição para ver quem é o melhor.
“Não tem rivalidade alguma, eu me dou bem demais com o Casão [mestre Casagrande]. É um grande amigo. A gente tem que ser totalmente desprovido de vaidade, a disputa só existe no desfile.”
Há 23 anos na escola de Nilópolis e à frente da Soberana junto com Mestre Plínio desde 2010 — justamente o primeiro ano da década — Rodney confessa que teve muito receio de assumir o comando da bateria. “A Beija-Flor é uma potência, cara. Logo de cara assumir uma bateria desse quilate, tem que ter muita coragem. Mas eu sou brasileiro, fui à luta, sempre respeitando o maior patrimônio de uma escola, que é seu componente e seu ritmista.”
O resultado não poderia ser melhor. Nota máxima no ano de estreia e nos anos de 2012 e 2014, além de apenas um décimo perdido, em 2016. “Esse ano [2016], inclusive, nós ganhamos sete de oito prêmios possíveis. Não vou ficar aqui falando sobre isso porque é meu trabalho e pode ter consequências, mas foi inacreditável perder décimo naquele ano.”
Independentemente do julgamento, para Rodney a bateria tem tido uma evolução impressionante, sempre superando o ano anterior. E o segredo para o sucesso da orquestra da Beija-Flor, segundo ele, é um conjunto de fatores. A dedicação nos ensaios é o principal.
“Eu quero ensaiar toda hora! Se eu morasse em Nilópolis iria todo dia pra quadra. Os ritmistas até brincam comigo, falando que, graças a Deus, eu moro no Méier [risos]. Mas temos que ensaiar muito. O dia que eu achar que cheguei à perfeição, a gente vai perder rendimento. A cobrança tem que existir, e a gente ensaia muito pra entrar na pista com a menor margem de erro possível”, explica.
Além do fator ensaio, os instrumentos e a afinação são os grandes diferenciais da Soberana. A começar pelo tamanho das “peças”: a bateria nilopolitana é a única a utilizar surdos de 61 centímetros, enquanto as demais agremiações utilizam os de 45, o que permite um som bem mais grave. Para garantir a afinação correta, Rodney também não utiliza películas de envelopamento nos instrumentos.
“Eu uso só a película clássica, que protege da chuva, e mesmo assim a afinação já muda um pouco. Mas bateria não é um caminhão de chinês, tudo é muito diferente, a afinação, os timbres, os breques, os arranjos e as convenções”, detalha o mestre.
Para equilibrar os timbres, os mestres utilizam 120 caixas na “cozinha”, de 14 e 12 polegadas.
“A caixa de 14’’ é o metrônomo, é ela que dá o andamento e não deixa cair o ritmo; a de 12’’ dá o suingue, o balanço. Temos repiques de 12’’, que são agudos. Eu ainda tenho alguns ritmistas que conseguem dar essa dinâmica na batida. Também voltamos com o naipe de frigideiras, acho que essa é a principal mudança. Pra dar mais agudo. As frigideiras somam justamente em cima da virada de segunda. Hoje eu tenho um naipe inteiro [de frigideiras] de ritmistas formados na escola, da nossa comunidade. É essa junção de grave, médio e agudo que dá o molho. Soma isso ao repique mor e aí, meu filho, o bicho pega!”, brinca.
O andamento também é um dos fatores mais importantes para os mestres. A média da Soberana é de 144 bpm (batidas por minuto), mas, segundo Rodney, é o samba quem vai ditar se a bateria deve acelerar ou diminuir a intensidade.
“Cada samba tem a sua métrica. A Beija-Flor não é uma escola de andamento fixo. Quem tem o andamento é o samba. Só não pode colocar muito pra trás, porque em uma bateria muito grave a tendência é ficar ralentado. Então tem que saber dosar. Em 2017 (Iracema), por exemplo, a gente tinha um andamento lento, mas não foi arrastado. Pelo contrário, foi um dos melhores da Beija-Flor. Até hoje fico delirando, assistindo à apresentação da bateria em 2017.”
Casão e a filosofia do “falar pouco”
Mestre Casagrande é um homem de poucas palavras. Um pouco avesso a entrevistas, o comandante da bateria da Unidos da Tijuca fala apenas o essencial, mas sempre muito cirúrgico. Para ele, o negócio mesmo é trabalhar e fazer o que precisa ser feito para conquistar os 40 pontos na Avenida. Literalmente: a bateria Pura Cadência chegou a conquistar a nota 40,0 por cinco anos consecutivos na última década. Fruto de um trabalho consistente do regente que está a frente dos ritmistas do Borel desde 2008.
“Muito bom saber disso [ser a melhor bateria da década]. Eu acho que é a certeza do trabalho bem feito. A gente tem essa consciência, de que estamos fazendo um bom trabalho, mas ao mesmo tempo também a responsabilidade é muito grande. A cada ano você precisa se inovar, né? Eu sempre costumo dizer aos meus ritmistas e diretores: cada ano é um ano. O que passou, já foi, vamos pensar no seguinte”, revela Casão.
Nos últimos dez anos, o mestre da Tijuca fez pouquíssimas mudanças na bateria. Segundo ele, o que muda apenas é a “logística do ritmo”.
“A bateria não mudou, é a mesma nesses dez anos. Mesma quantidade de ritmistas, mesmos naipes, mesma métrica de andamento. O que muda é a logística do ritmo, a peculiaridade de cada enredo e o que ele nos pede. A parte musical, de bateria e samba-enredo, muda totalmente. Isso que faz diferença de um ano para o outro, a gente procura trabalhar em cima do que o samba nos pede”, revela. “A direção técnica [diretores de bateria] também mudou muito pouco nesses doze anos que estou à frente da bateria. Isso também é muito importante.”
Exigentes, mas de coração mole
Apesar de serem bastante exigentes, mestre Rodney e mestre Casagrande tem o carinho e o respeito de seus ritmistas. Inclusive, o “Rodney Morde e Assopra”, como ele mesmo se chama, conta que convive mais com os músicos do que com a própria família.
“Minha bateria são meus filhos. Estou mais com eles do que em casa. A quadra da Beija é a continuação da minha casa. Eu tive um momento muito triste na minha vida, que foi o falecimento do meu pai, e a escola alugou um ônibus para a bateria estar ao meu lado nessa hora. Não tem preço isso. A mesma coisa com o Carlinhos [diretor da bateria, falecido em 2019]. Ele fazia a manutenção dos instrumentos, era o chato que todo mundo amava. Meu fiel, meu irmão. Quando ele faleceu, a escola mais uma vez alugou um ônibus e foi todo mundo com a camisa da bateria pro cemitério de Inhaúma. Era tanto ritmista que todo mundo lá pensou que teria evento. A minha bateria é muito humana.”
Casagrande compartilha da opinião do amigo: “a gente pega mesmo no pé. Mas é pra que tudo dê certo. Manter o foco. Hoje felizmente o ritmista é muito focado. A maioria deles tem seus instrumentos em casa, tocam em casa. Quando voltar dessa pandemia, vamos fazer um trabalho técnico e físico, mas também mental com a rapaziada. Só esperar a chegada dessa vacina pra gente conseguir começar a ensaiar fisicamente na quadra”.
Sobre o cancelamento do carnaval de 2021, Casão acredita que todos os segmentos terão bastante dificuldade para voltar ao ritmo e destaca que as baterias podem até diminuir o número de ritmistas.
“Eu não vou nem falar dois anos [de preparação], porque um ano a gente ficou parado por causa da pandemia. A gente tá parado ainda, na verdade. Vai ser muito difícil, todas as baterias vão ter uma dificuldade grande. O ritmista perde a resistência, falta braço no final do ensaio, o mental das pessoas para retornar aos ensaios também não vai estar 100%. Não só bateria, mas todos os componentes, baianas, enfim… A gente não sabe como é que vai ficar daqui até novembro, dezembro, se vai estar todo mundo vacinado. Ainda não tem segurança pra desfilar. Creio que as baterias vão ter até que diminuir o número de ritmistas”, admite.
Mestre Rodney também comentou que foi pego de surpresa, pois sabe que seus ritmistas e diretores esperam por isso o ano todo. Segundo ele, todos estão muito chateados por não poder desfilar.
“Tá todo mundo chorando. Ontem mesmo eu estava na quadra com alguns deles, fazendo uma reportagem para uma TV da China e deu um vazio que não dá pra explicar. Quando recebemos a notícia [do cancelamento do carnaval], foi um baque. Já esperávamos, mas todos ficaram arrasados. Nunca pensei em passar por isso. Ontem [primeiro dia de desfiles do Grupo de Acesso], eu estaria apresentando a bateria da Lins Imperial, escola onde comecei. É triste. Mas Deus sabe o que faz, tenho certeza que dará tudo certo. Inclusive, saber que somos a melhor bateria da década vai deixá-los muito felizes! Deus sempre sabe o que faz.”