O último sábado, feriado de Nossa Senhora Aparecida, fez os amantes do samba sorrirem feito criança. Com três finais espalhadas pelo Rio, o clima de carnaval deu o ar da graça para não deixar mais a cidade. União da Ilha, Estácio de Sá e Estação Primeira de Mangueira escolheram seus sambas neste dia, todas com quadras lotadas e eufóricas à espera da decisão.
No Palácio do Samba a expectativa é sempre gigantesca, o que foi amplificado este ano pelo campeonato da escola em 2019, com o enredo Histórias para Ninar Gente Grande. O público pode conferir e se despedir de um samba histórico, que emocionou a Sapucaí no decorrer do desfile oficial e ao encerrar o Desfile das Campeãs. Para substituir um ano tão especial, o carnavalesco, Leandro Vieira, que vai para o seu quinto carnaval verde e rosa, desenvolveu o enredo A Verdade vos Fará Livre, em que humanizará a figura de Jesus Cristo, um homem tão simples quanto nobre, como qualquer morador de uma comunidade carioca.
Além disso, o tema irá discutir sobre o discurso de intolerância religiosa e de exclusão e a forma como os ensinamentos de Cristo tornaram-se uma arma de dominação e opressão que vai de encontro a tudo aquilo o que pregou. Mais um enredo imerso em uma poesia reflexiva, o que tem se tornado uma característica dessa parceria de sucesso entre Leandro Vieira e a Mangueira.
O pensamento crítico, aliás, pontuou também a forma como a disputa aconteceu. A escola decidiu repensar o modelo atual, praticado entre todas as coirmãs, mas comumente repreendido como excludente devido aos altos custos gerados para o compositor, o que aniquilou as possibilidades de poetas sem suporte financeiro alcançarem um campeonato em suas escolas. Dentre as principais mudanças, a Mangueira proibiu a presença de torcidas comerciais, de intérpretes de outras agremiações e de parcerias com mais de quatro compositores. Todo o processo de gravação das obras foi realizado pela própria escola, que estabeleceu uma taxa de inscrição para cobrir os custos, o que não deixou de ser criticado no mundo do samba.
Os erros e acertos do novo modelo ainda precisam ser analisados, mas o simples gesto de olhar para dentro e tentar resgatar a alma da escola de samba como um lugar de fala dos artistas da comunidade já confere à Mangueira um olhar de respeito.
Em seu novo padrão de disputa, a escola levou à final três sambas dos seguintes compositores:
– Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo;
– Beto Savana, Índio da Mangueira, Luiz Paulo Jr. e Sandra Portella;
– Rodrigo Pinho, Pedro Terra, Bruno Souza e Leandro Almeida.
A ausência das torcidas organizadas, que costumam lotar a frente do palco durante as apresentações, resultou em um ambiente menos explosivo que o de costume, mas com um brilho muito mais realista da aceitação de cada samba pelos presentes, vez que foi possível identificar o quanto cada obra conquistou o público a cantar e vibrar ao longo dos seus 25 minutos de execução.
Encerradas as exibições, não demorou até que o anúncio da campeã sacudisse o Palácio do Samba. A composição de Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo saiu vitoriosa da disputa, tornando-se o novo hino que a verde e rosa vai levar para a Avenida como uma reza, uma exaltação à igualdade e esperança entre os homens.
Confira a letra do samba do G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira:
Compositores: Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo
Mangueira
Vão te inventar mil pecados
Mas eu estou do seu lado
E do lado do samba também
Eu sou da Estação Primeira de Nazaré
Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher
Moleque pelintra do Buraco Quente
Meu nome é Jesus da Gente
Nasci de peito aberto, de punho cerrado
Meu pai carpinteiro desempregado
Minha mãe é Maria das Dores Brasil
Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira
Me encontro no amor que não encontra fronteira
Procura por mim nas fileiras contra a opressão
E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão
Eu tô que tô dependurado
Em cordéis e corcovados
Mas será que todo povo entendeu o meu recado?
Porque de novo cravejaram o meu corpo
Os profetas da intolerância
Sem saber que a esperança
Brilha mais que a escuridão
Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem Messias de arma na mão
Favela, pega a visão
Eu faço fé na minha gente
Que é semente do seu chão
Do céu deu pra ouvir
O desabafo sincopado da cidade
Quarei tambor, da cruz fiz esplendor
E num domingo verde-e-rosa
Ressurgi pro cordão da liberdade
Confira algumas imagens da final da Estação Primeira de Mangueira: