A Acadêmicos do Grande Rio divulgou, na noite desta segunda-feira (10), a sinopse do enredo 2025; “Pororocas Parawaras: As águas dos meus encantos nas contas dos Curimbós”, que será desenvolvido pelos carnavalescos: Gabriel Haddad e Leonardo Bora.
Só o mar, o rio, o Grande Rio, aqui azul, ali verde, mais distante negro, barrento além, límpido mais adiante, interessava sua curiosidade, dava-lhe o desejo de viver e ser gente.
Eneida de Moraes – Banho de Cheiro
São elas as princesas dos segredos do Brasil encantado.
Luiz Antonio Simas – Almanaque Brasilidades
Kirimbasawayúriyí-itá / Yanéãgawara-itá
(A força que vem das águas / São os nossos Encantados)
George Borari e Keissi Borari – Suraras do Tapajós
O Carimbó é muito quente
Da cintura pra baixo eu sou peixe
Da cintura pra cima eu sou gente
Mestre Verequete – Sereia do Mar
– eu ouvi o rio
e ele falou pra mim
então eu renasci.
Mayara Yamada – Caudalosa
De todas as coisas do fundo eu vou falar um pouco. Ouvidos abertos, atentos à voz que baila. É ela quem versa o ponto, pinta o rosto, poetiza: remanso. Porque “as águas dos meus encantos… é doce!”
1 – Água doce me leva, deixa as águas me levar pra barreira do mar
No balanço, eu conto uma história de Princesas e Encantarias, areias, brumas e barro. Desfio a colcha de retalhos. Sigo em frente, mareando. Banzeiro de barco. Terceira margem, à beira. Mouros e mururés. Tudo, pois, começou no mar, em meia-viagem, nas tempestades. Tempo fora do tempo, quando a gente peregrina. Encruzillhadas cruzadas, fantasmas, mas é isso (ou aquilo): lenda, crença, reza, mito. Dizeres, letras que flutuam. Lanternas. Palavras que não afundam nas fossas abissais. Sereias e abassás, terreiros nos cantos das águas. Sangue, sal, saudade – a vida nada.
Contam de um sábio Rei, Sultão de nome afamado, cujas filhas embarcaram, fugindo das guerras santas. Eram três as Maresias, Tóias Turcas, Joias d’Água, navegando, navegando: Mariana, Herondina e Jarina. Que não conheceram a morte, uma vez que o mistério é o presente, verde, muiraquitã no peito: diante do arrebatamento, o naufrágio o inevitável, cruzaram os Portais da Encantaria e mergulharam no Espelho do Encante. O Avesso. Quando a névoa se fez incenso – e o céu, azul, azulejo.
2 – Verequete é o Rei coroado lá no mar
Coroa, coroa, coroa… brilhou no mar
Nas praias do Grão-Pará, brancas, lençóis de algodão, a Turquíssima Trindade encontrou um protetor. Verê, Averequete, Vodum poderoso, Tói, Totem das Ondas, Senhor das Espumas. Que se transforma em Pombo Roxo e pajeia, cintilante, a única das Sete Cidades que pode ser contemplada, vasta, sobre a imensidão barrenta. Marajó das revoadas, Aguaguara, vertigem! Viram, então, palácios e berçários, sementes da vida, romã-biribá-bacuri. Vida que vira mangue, mangue que oferta argila para que essa infindável vida seja traduzida em traços, ocos, vasos, dutos: olho d’água, útero do mundo. Na lama, no pântano, nasce a flor mais bonita – aprenderam, à deriva. Seguiram.
3 – Um chamado do fundo / você tem que respeitar
Assim disse um caramujo / que lá foi visitar
As águas driblam seus cursos, levam e lavam, no contrafluxo desse barco, que risca, lentamente, o arco espelhado do Encante. No fundo dos igarapés, nas bocas das matas, os bichos se transfiguram. Flecham! Cobras, sapos, peixes, caruás, o segredo em Pena e Maracá, Pajelança Cabocla. Mãe d’Água canta, Boto assovia, Boiúna se agita no lodo, Caipora e Curupira rodopiam nas clareiras. Mapinguari espia, Matinta espreita. A floresta, ela mesma, se materializa em entidade
Jurema, Quarta Conta, deusa cuja coroa, cocar tricolor, se uniu às três Soberanas. Rebatizadas, nas cascatas da Amazônia, Mariana foi Arara cantadeira; Jarina, a Jiboia vigilante; Herondina, a Onça do meu destino.
4 – Meu chão tem Encantaria, meu chão tem Encantaria
Eu não posso falar tudo, o meu pai não me ordenou
As mesmas águas que purificam, nas curvas dos descaminhos, carregam o misticismo e saciam as novas misturas. Tantas famílias chegaram, ribeirinhas; a corte se perpetua: os Dois Irmãos, Averequete e Dom José, viram o axé florescer, no Guamá. Lá e cá, Daomé. Mina-Jeje, Mina-Nagô. Babaçuê, batuques, batalhas…e mais brasa no defumador.Nobres com suas bandeiras, ciganos, marinheiros, boiadeiros, é de Légua e do Codó, é d’Oxum, Nanã e Iemanjá…
…é de Parailá, é de Parailô…
Vibra o Tambor de Mina, pulsa na pele das águas! De cuias, quartinhas, pias e garrafadas, veias de um mesmo tronco, raízes cuja seiva é também saliva, toque de abatazeiro, bouquet de patchouli. Muito forte é a fé, nas águas de Nazaré! Dançando ao luar, na Guma,as Princesas Ajuremadasofertaram os seus perfumes.Donas de toda a magia – afinal, “fizemos Cristo nascer na Turquia. Ou em Belém do Pará”. A rosa mosqueta, de frescor adocicado; a luz de azahar, em flor de laranjeira; as mais raras pétalas dos ramos da juremeira. Juntas, cantaram as suas doutrinas. Lideraram exércitos, nas trilhas Icamiabas. Passearam, festeiras. Bordaram, enfim, suas rotas divergentes.
A vermelha é Mariana, a amarela é Jarina
A branca é a Cabocla Jurema –Juremê, Juremá
A verde é a Cabocla Brava, é a minha Cabocla Herondina
Que não me deixa cair, não me deixa tombar
Agora, o que ouvi por aí, vivido, nas folias: contam que Mariana assumiu o navio do pai e margeou a costa brasileira, em luta; contam que Tóia Jarina, vestida na cor do pavão, pode ser vista a girar nas praias, nas dunas adormecidas; e contam que Mãe Herondina não mais deixou a floresta – lá ficou, entre as samaúmas.
Pois tudo virou Carimbó, nos cantares do povo. “Chama Verequete”, o brado em trovão do Mestre! “Chegou Dona Mariana”, ginga de Pau e Corda! Os tambores Curimbós são a voz dos Encantados – contam, comem, rufam, narram. Curimbam! Toda a gente é rio e som, num banho de chuva e cheiro.Quando o canto de Dona Onete, Rainha, beija as Contas da sua vida, louvando, faceiro e jamburano, a proteção das Belas Turcas, celebra os recados das matas, os espíritos das águas, as ervas da Jurema e o saber ancestral da cura. Era isso o que elas buscavam: a cura, macerada na mão.
Aparelhagem Astral: É noite de festa no Reino da Encantaria!
O barco que me conduz não tem porto de chegada. Sou o próprio delírio sambista, nesse Grande Rio, sou o sonho aquecido no couro, a sagração das Pororocas – elas,lume de estrelas, aquelas que nos defendeme convidam aos segredos. Estrondo!Quero ver Carimbó na Avenida, quero mais carimbolar! Abrir as letras de um Samba valente! Acordar a Cobra Grande e fazer terra firme tremer! Quero ser, para sempre, a beleza guardada nas guias de quem, ainda criança, brilhou na Lua crescente, desceu ao fundo das águas, voou nas asas de uma borboleta azul, penteou os cabelos da Uiara e brincou de se encantar.
Enredo, pesquisa e texto: Gabriel Haddad e Leonardo Bora
Pesquisadora convidada: Rafa Bqueer
Assistentes de pesquisa / equipe de criação: Patryck Thomaz, Rafael Gonçalves, Sophia Chueke, Theo Neves
Agradecimentos:
Jean Gomes Negrão, Cláudio Didimano, Claudio Rego de Miranda, Ursula Vidal, Fernando Pessoa, Luiz Antonio Simas, Fernanda Martins, Leonardo Carrato, Luis Júnior, Alessandro da Silva Abreu, Odir Lima de Abreu, Cláudia Palheta, Lucas Belo, Josivana de Castro Rodrigues, Cilene Andrade, Ronaldo Guedes, Madson Embaixador, Ju Gomes, Jane Cerdeira, Marcelle Almeida, Thiago Hoshino, Alberto Mussa, Renato Menezes, Thiago Albuquerque de Lima, Thiago Avis, Vitor Souza Lima, Filipe Almeida, Mavi Maia.
Agradecimentos especiais, de axé e carimbó:
Pai Felipe e Ilê Axé Pedra de Itaculumí, MametuNangetu e Candomblé Manso Massumbando Keke Neta, Mãe Elô e Terreiro de Tambor de Mina Dois Irmãos, Pai Elivaldo e Terreiro de Rei Sebastião e Toya Jarina, Mestra Amélia Barbosa e Grupo de Tradições Marajoara Cruzeirinho, Mãe Fátima e Terreiro de Iansã Nossa Senhora da Conceição, Pajé Dona Roxita, Mestre Griô Chico Malta e Grupo de Carimbó Cobra Grande, YáObasylé Conceição e Ilê Dará AséOyáOnira, Mãe Luiza e Ilê Axé Monadeuy, Wellen Sillva e Grupo Carimbó do Pará, Andreia de Vasconcelos e Carimbó Aturiá, Dona Onete – a Mestra que nos deu o fio de contas, o pontinho que faltava.