Em uma noite de celebração ao Dia de Preto Velho, o Tuiuti lançou a sinopse e a logo do enredo “Lonã Ifá Lucumí” para o Carnaval 2026. O texto, desenvolvido pelo carnavalesco Jack Vasconcelos, servirá de inspiração para os compositores Cláudio Russo, Gustavo Clarão e Luiz Antônio Simas. Eles serão os autores da canção da azul e amarelo de São Cristóvão do próximo ano.
Já a logo foi feita pelo designer Antonio Vieira. Ele se inspirou em artistas cubanos para criar a marca:
“A confecção da arte do cartaz teve como base o estilo de pintura e escala cromática de alguns artistas plásticos cubanos, como o surrealista Wilfredo Lam e o expressionista pop Raul Martinez. As tipografias utilizadas para o título do enredo remetem às pinturas urbanas encontradas em Havana em texturas de paredes pintadas, com camadas sobrepostas de cores diferentes, cujo desgaste do tempo expõe várias delas. Essas texturas estão presentes na paisagem urbana e arquitetônica cubana. A predominância de tons advindos das cores verde e amarelo se deu por conta delas serem cores relacionadas ao Ifá cubano, diferentemente das cores predominantes do Ifá nigeriano que são o verde e o marrom. A figura do Sacerdote, o Babalorixá de Ifá, se assemelha propositalmente ao Babalaô Rafael Zamora, cubano que trouxe o Ifá Lucumi/cubano para a cidade do Rio de Janeiro”, explicou.
LONÃ IFÁ LUCUMÍ
Laroiê, Eleguá! Agô.
No princípio era o axé…
Quando Olodumare, o supremo criador da existência, do universo e dos orixás, soprou o Emi (energia vital) para que o primeiro ser humano moldado por Obatalá ganhasse vida com seu Orí divinizado, consciente e portador daquele destino, Orunmila estava presente e tudo assistiu. Todos os seres foram conectados energeticamente e os orixás, regentes das forças da natureza, passaram a comandar cada aspecto e expressão da vida humana.
Orunmila, o Èléri Ípìn, a testemunha da criação, portanto, recebeu de Olodumare a dádiva de ser seu porta-voz no oráculo de Ifá para guiar a humanidade pelo bom caminho e cada pessoa ao melhor cumprimento de seu destino na dimensão terrena, o Ayiê, através da comunicação espiritual com a dimensão sobrenatural das divindades, o Orún.
Epá Ojú Olorun! Ifá Ò! (Viva os olhos do Criador! Ele é Ifá!)
Na cidade sagrada de Ilé Ifé, fundada por Odudua e onde os primeiros humanos moldados por Obatalá iniciaram sua caminhada na Terra, Orunmila, o profeta dos destinos e guardião da sabedoria, transmitiu o conhecimento oracular do Ifá aos Babalaôs Iorubás.
Sentados sobre a esteira de palha, aprenderam a decifrar as mensagens de Orunmila contidas nos Odús que se desenham ao jogarem o cordão aberto (o princípio e o fim) trançado com oito metades de favas de Opelê sobre o tabuleiro de madeira Oponifá.
Lònà Ifá (Caminho de Ifá)
Assim, os Babalaôs Iorubás levaram o Ifá praticado na sagrada Ifé, e na cidade de Oyó, mundo antigo afora semeando a palavra de Orunmila. Pelas rotas comerciais para além do Saara, de Kemet à Babilônia, os sacerdotes contaram as histórias e ensinamentos contidos nos Patakis, louvaram Orikis para as divindades e ofereceram os ebós pedidos nos Odús revelados nas caídas dos seus Opelês sobre os Oponifás.
Até que o caminho de Ifá cruzou o Atlântico, à força, acorrentado no destino dos Iorubás escravizados e traficados para a exploração do Novo Mundo. Olokun, divindade soberana dos mares e dos segredos da vida e da morte, transportou em suas águas a tradição religiosa africana até o mar caribenho para que a ancestralidade iorubana fosse recebida pela ancestralidade indígena de Taínos e Ciboneys naquela ilha que seus originários chamavam Cubanacan ou, simplesmente, Cuba.
Mo júbà! Oluku mi! (Vos saúdo! Somos amigos!)
Com a chegada dos Iorubás de Ifé e Oyó em terras cubanas para o trabalho nas fazendas de cana-de-açúcar e café, nasceu a nação Lucumí. Para o regime escravagista espanhol, lucumis eram todos os cativos iorubanos em geral, porém, os próprios escravizados se identificavam sinalizando suas origens, como: Lucumí-Oyó, Lucumí-Egba, Lucumí- Ekiti, Lucumí-Ijebu…
Sob a irradiação aguerrida de Oggun, o primeiro rei de Ifé, os lucumis levantaram os metais de seus facões diversas vezes contra a tirania dos colonizadores. Na província de Matanzas, a escravizada iorubá Carlota Lucumí liderou a Insurreição do Engenho Triunvirato, que destruiu vários engenhos, eliminou colonos, incendiou fazendas e libertou centenas de escravizados.
Oggun Ye! Mo ye! (Ogum está vivo! Eu estou vivo!)
Matanzas, aliás, foi o berço do Ifá cubano e o pai foi o babalaô Remígio Herrera, o Adechina. Um ex-cativo de engenho açucareiro que, quando alforriado, foi para Nigéria ser consagrado em Oyó. Com a missão dada por Orunmila de fundar o primeiro Cabildo Lucumí na América hispânica, retornou a Cuba trazendo os fundamentos da Regla de Ifá e iniciou o primeiro babaláo em solo cubano: Tata Gaytán.
O Ifá cubano se expandiu e adquiriu caráter próprio. A língua Lucumí assimilou influência de falas indígenas e espanholas e “lucumizou” as expressões. Altas deidades e Orishas, maiores e menores, formaram o panteão divino. O Obí advinhação com cocos, rachados em quatro partes para que as combinações entre as faces claras (o interior) e escuras (a casca) respondam pelas divindades ao serem lançadas no chão, se tornou marca do Ifá cubano. Os filhos de Orula (Orunmila) iniciados passaram a ser identificados pelo uso do Ileké no pescoço ou do Idefá no pulso esquerdo para lembrar do pacto que Orula fez com a morte para que ela não leve os seus antes do tempo destinado. Ambos feitos de contas verdes e amarelas que representam a união da sabedoria de Orula (o verde do viço das folhas frescas) com a fertilidade de Oshun (o amarelo da decomposição das folhas) que nos lembram do inevitável ciclo da vida.
Para despistar a perseguição aos cultos de matriz africana, Iorubás identificaram seus Orixás com santos católicos e criaram a Santería, também conhecida como Regla de Ocha ou Regla Lucumí, onde o Ifá é o centro oracular divinatório. Se expandiu pela ilha após a Revolução Cubana e ficou ainda mais popular depois que o Estado mudou de ateu para laico com a extinção soviética. Hoje, a mão de Orula está presente na vida de grande parte do povo cubano e os tambores Batá ressoam consagrados em Ifá pelos cabildos de Havana.
Agô Ilé. (Peço licença para entrar)
Existe uma conexão espiritual entre Cuba e o Brasil, enraizada em nossa reverência aos Orixás e aos nossos ancestrais africanos, que nos enlaçam culturalmente e energeticamente há gerações. O destino quis que o Ifá Lucumí se ramificasse até aqui e se consolidasse no Rio de Janeiro através do Opelê e do Oponifá do Babalaô cubano de linhagem dos veneráveis Adeshina e Tata Gaytán, Rafael Zamora. Dessa bendita rama continua a florescer Babalaôs brasileiros, afilhados, famílias em Ifá e comunidades-terreiro dedicados ao culto de Orunmila.
Num momento tão difícil para a humanidade na Terra como este, com tantos conflitos e desequilíbrios, que Ifá nos guie no caminho para o bom caráter, respeito e a harmonia entre as pessoas e a natureza. Que Orunmila ordene o mundo nos caminhos do bem.
Iboru Iboya Ibosheshe! (Que nossas súplicas sejam ouvidas!)
Jack Vasconcelos
Referências:
ALCARAZ, José Luis. Santería cubana, rituales y magia. Madrid: Tikal Ediciones, 2013.
ARAÚJO, Leonor Franco de. Sistema filosófico de Ifá. Salvador: Tese (Doutorado em Difusão do Conhecimento) – Programa de Pós-Graduação Multi-institucional em Difusão do Conhecimento, 2023.
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LOPES, Nei; SIMAS, Luiz Antonio. Filosofias Africanas: uma introdução. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2023.
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SILVA, Sebastião Fernando da. A Filosofia de Òrúnmìlà-Ifá e a formação do Bom Caráter. Goiânia: Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Escola de Formação de Professores e Humanidades, Pontifícia Universidade Católica de Goiás, 2015.