Zé Paulo Sierra defende o samba campeão - Foto: Diego Mendes

Com a ginga de um bom capoeira, Unidos de Padre Miguel exalta a ancestralidade em escolha do samba para o Carnaval 2020

Por: Ruan Rocha

Samba da parceria de Samir Trindade  foi aclamado e se consagrou  o grande campeão da disputa

Sexta escola a desfilar no sábado de carnaval, em 2020, a Unidos de Padre Miguel já tem um samba para chamar de seu: para exaltar os movimentos, a história e a brasilidade da capoeira. A vermelho e branco da Vila Vintém, pelas mãos do carnavalesco, Fábio Ricardo, que faz sua estreia na agremiação, vai defender o enredo Ginga, através do qual irá contar a história dessa arte marcial com bailado único, desenvolvida no Brasil inspirada por um ritual de iniciação de jovens à vida adulta em povos de Angola, o n’golo.

Durante uma cerimônia, os homens competiam ao som de atabaques em uma luta em que o objetivo era encostar o pé na cabeça do adversário. O vencedor ganhava o direito de escolher uma noiva entre as jovens que estavam chegando à vida adulta, sem pagar o dote. No Brasil, o n’golo deu origem à capoeira, meio de defesa para os escravos contra seus inimigos, principalmente os quilombolas, que usavam a habilidade para proteger o grupo de refugiados.

Ao som de atabaques e berimbaus, com um gingado encantador, a capoeira fez-se esporte, conquistou espaço para suas rodas e agora recebe essa merecida homenagem da Unidos de Padre Miguel. Uma exaltação à ancestralidade, à resistência (luta e sobrevivência) do povo negro e a esse patrimônio imaterial da cultura brasileira. Uma arte que tem canto, batucada e uma forte herança negra a ilustrar as páginas de sua história, afinal, tem tudo a ver com o samba, o que é um vigoroso estímulo para a comunidade da Vintém mostrar que não falta ginga ao povo da Zona Oeste.

Outra coisa que não falta neste canto da cidade é disposição. Na última sexta-feira (06), a quadra da UPM ficou lotada para a disputa de sambas que definiria o canto oficial do boi vermelho no próximo carnaval. Diego Nicolau, novo intérprete oficial da agremiação, acompanhado pelos seus companheiros do carro de som, agitou o público e os diferentes segmentos ao entoar os sambas mais marcantes da vermelho e branco.

E por falar em ancestralidade, a noite também foi marcada pela apresentação do novo símbolo da Unidos, que remete ao passado e fundação da escola, em 1957. O boi vermelho retoma seu lugar de destaque e volta a tremular no centro do pavilhão, protegendo e simbolizando a força do povo da Vintém.

Já era madrugada quando os seis sambas concorrentes inflamaram a arena, levantando suas torcidas e conquistando admiradores. Chegaram à final as parcerias encabeçadas por Eli Penteado, Thiago Vaz, Jefinho Rodrigues, Samir Trindade, Cláudio Russo e Leonardo D’Vincci.

Sob o comando do intérprete da Viradouro, Zé Paulo Sierra, a parceria composta por Samir Trindade, Jr. Beija-Flor, Ribeirinho, Guto Biral, Davi Show Serrinho, Ricardo da G. Braga, Dilson PS Medeiros e Rômulo Presidente, conquistou a confiança da comunidade e sagrou-se como o samba que a escola vai defender na Marquês de Sapucaí, no dia 22 de fevereiro de 2020.

Samba da parceria de Samir Trindade foi aclamado e se consagrou o grande campeão da disputa – Foto: Diego Mendes

Já passava das quatro horas da manhã quando Cícero Costa, diretor de carnaval da escola, fez o anúncio oficial que deu início a uma grande festa entre os compositores e apoiadores do samba.

Pouco a pouco o Rio de Janeiro começa a respirar carnaval. Que a resistência ancestral da capoeira sirva de inspiração para que a ginga do samba seja nossa arma contra os interesses autoritários dos ambulantes da fé, que não medem esforços para confiscar a arte e calar a cultura popular.

Veja a letra do samba campeão da Unidos de Padre Miguel:

COMPOSIÇÃO: Samir Trindade, Jr. Beija-Flor, Ribeirinho, Guto Biral, Davi Show Serrinho, Ricardo da G. Braga, Dilson PS Medeiros e Rômulo Presidente

Nego, malandragem de Angola
Fujão de senzala, moleque meu irmão
Eu vi um nego, guerreiro ancestral
Na Dança do ritual
Pra fazer revolução

Pé descalço no céu, berimbau na mão

Okô, oo era senhor
Chora o capoeira
Sonhava um tempo de paz
Cordel na beira do cais
Deu meia lua e não foi de brincadeira
Rabo de arraia levantou poeira
Paranauê , paranauê Paraná

Jogo de dentro, São Bento, filosofia
Maculêlê, Maria
Paranauê camará

E lá vai o Capoeira ( zum zum zum zum)
Feito brisa a liberdade ( na rasteira mata um)
Foi o mestre na Bahia
Foi aluno em Palmares
E quando vejo o povo da Vila Vintém
Que na briga não teme ninguém
Lembro o Capoeira
O nosso herói se fez Besouro e bamba
É filho desse quilombo
Resiste aprendendo a amar o samba

Girou , gira , jogador
Abre a roda pra cultura brasileira
Gingou ,ginga , vencedor
É a Unidos de Padre Miguel capoeira

Confira a sinopse do enredo do G.R.E.S. Unidos de Padre Miguel:

GINGA

Ideia Original e Carnavalesco: Fábio Ricardo

Pesquisa e Texto: Marcos Roza

Logo UPM 2020

Viajando no tempo da poesia, nasço da espontaneidade sagrada, do mítico ritual do povo Mocupe do sul de Angola. Brincando entre as brisas, filhas do vento, desperto o desejo de conquista de jovens guerreiros à dança do N’golo. Lembro-me bem: os tambores anunciavam a preparação da Enfundula – festa de passagem à vida adulta –, quando as raparigas fertilizavam o sangue da puberdade num misterioso cio, que encorajava rapazes a lutar pela disputa de suas esposas.

No afã da minha gente, sou a doce e constante firmeza de elo e abrigo. Filha da Mãe África, “berço da humanidade”, cresço entre seus ritos de mistérios e verdades, templo sagrado de Okô – divindade da agricultura, formo do sábio cultivo da terra e do domínio que forja as ferramentas ao seu plantio; dita ventura à típica pecuária, entrelaço-me à candura dos diversos encantos de sua cultura. Mãe! Eu sou a extensão do seu umbigo, fruto que brota desse chão, a força e o espírito de nossas tribos… Assim, eu sigo, levada pela tradição de seus ensinamentos, a destreza para vencer os inimigos.

Tudo ressignificava o meu saber, emergindo da linha do horizonte, trazida pelo cerne da dor e do lamento. Cruzo a imensidão dos mares entre a calmaria e a tempestade, acorrentada pela intolerância de homens fiéis à ganância e ao poder. Desprovida de liberdade, meu corpo padece, é escravo por fim. Mas não é rendido, apesar de ferido, encontra o elo supostamente perdido.

Por bem ou por mal aos ferros expostos, terei, eu, sorte igual? Longe das minhas paisagens habituais, velo a alma coberta de poesia tradicionalmente africana, em terras distantes. Entre pregões e a violenta estada no “Cais do Valongo” – por onde chegaram milhares de negros escravizados, sigo o “bando banto”. Abrasada nas senzalas, rompendo o silêncio de noites sombrias, sou incorporada feito arte matuta, uma espécie de dança, disfarçada entre os afazeres da labuta. Mas é na hora da fuga, usando os pés, as mãos e a cabeça, que me revelam como luta – subtraída da dor contra as “leis do opressor”.

Diante do que se vê, tudo parecia uma cilada: numa relação humana, onde o elemento principal é a expressão do corpo, sou alvo do realismo fantástico de olhares estrangeiros. Telas são pintadas registrando a vida urbana, fosse de forma sóbria ou insana, o fato é que o ato da pitoresca caravana representa um fenômeno antropológico intrinsecamente ligado a diversos episódios da minha trajetória.

Como a inocência de uma criança, ibejê de esperança, sou praticada em círculo de arte-defesa. Pura ou armada à ladainha do mestre Pastinha e entre tantos outros camaradas, minha filosofia é criada. Abençoados sejam meus filhos, pois chegou a hora: repouso íntima e genuína aos valores da tradição de Angola. Com o saber gravado n’alma, danço, gingo, pulo, brinco e rodopio.

Da cerimônia ao desafio: peço a benção nos pés do atabaque e o jogo inicia. Saio no “aú”, me fortaleço no “rabo de arraia”, finco meu pé e não entro de “bua”, planto “bananeira”, solto “meia- lua”…me esquivo na “negativa” e o jogo continua…

“Sou manha, malícia, mandingueira, sou tudo o que a boca come…” Como guardiã da cultura negra e da preservação do seu saber, abro minhas rodas nas ruas, nas feiras, nas festas, nos cais, comandada pelo berimbau…regidos por vareta e bordão, soam o “Gunga”, o “Médio” e o “Viola”. Também seguem o ritmo: chocalho, reco-reco, agogô e pandeiro.

Toques, cantos, cantigas, corridos e ladainhas, tudo numa só sintonia: “São Bento Pequeno, Jogo de Dentro, Ave-Maria, São Bento Grande, Cavalaria, Maculelê, Benguela, Santa Maria”.

Canto e o coro responde: “Paraná-auê, Paraná-auê, Paraná…ê viva meu mestre, ê viva meu mestre camará, quem me ensinou…ê quem me ensinou camará…ê vamo-nos embora…ê vamo-nos embora camará… ê pelo mundo afora…ê pelo mundo afora camará…”

Mas, diante dos dados reais da vida, me pego pensando: sofri imensa perseguição e poucos sabem que dois anos depois da Abolição, Marechal Deodoro da Fonseca decretou minha proibição. Assim prossegui, entre brigas e arruaças, até o ano de 1932. Quando mudam o meu feitio, saltante, esportiva, com golpes rápidos e técnicas de arte marciais, fico mais ligeira e politicamente correta, aceita pela sociedade brasileira. Ganho status de uma tal gente bacana, que pelos ensinamentos de mestre Bimba, passa a me chamar de Luta Regional Baiana. Nesse espaço social, por meio de um novo decreto presidencial, sou legalizada como profissão. Saio da pauta policial e, na condição de esporte e lazer, sou praticada em todo território nacional.

Dominada pela carga simbólica dos signos místicos da cultura afro-brasileira em meio dos quais cresci, abro as cortinas do passado, saúdo os meus heróis – que tradicionalmente gingaram, relacionando-se até hoje suas atividades à história de luta e à formação do povo brasileiro: a realeza de Zumbi, do Quilombo dos Palmares; a “ginga verbal” de Machado de Assis; as batucadas e o candomblé de Tia Ciata; o olhar cotidiano de João do Rio; a plasticidade de Rubens Valentim; o Brasil folclórico de Macunaíma e os sambas de Candeia cantados em jongos, pontos de umbanda, sambas de roda e partido-alto, cantigas de maculelê e sambas de enredo.

Meu gingado é a gira, que corre gira nas rodas pelo mundo.

Seguindo o caminho voltado para a cultura, luta e resistência do povo brasileiro, consagro-me ao receber tamanho reconhecimento de Patrimônio Imaterial da Humanidade, de roda e ofício. Ao enredo do meu samba, unindo a todos que vão e que vêm, enalteço a força e a raiz quilombola da comunidade da Vila Vintém.

À devoção dos meus filhos, sou padroeira, sou a ginga do carnaval da Unidos de Padre Miguel. Nessa mistura brasileira, Sou mandinga,

A todos digo Feliz e sorrateira:

Muito prazer,

Eu me chamo Capoeira.

 

 

 

 

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