Neguinho da Beija-Flor - Foto: Fernando Grilli/Riotur

Vai começar a guerra! A origem e a importância do grito dos intérpretes

Por Gabriel Cardoso

“Olha a Beija-Flor aí, gente!”

“Solta o bicho!”

É muito raro que uma pessoa amante do samba não associe rapidamente as frases acima aos seus locutores. Inclusive, a ligação com elas é tão forte que muitos aqui lerão essas expressões imitando a entonação “original”.

Tratam-se, pois, de alguns dos gritos de guerra mais famosos que pisaram na passarela do samba, nos desfiles do Sambódromo desse ano. As expressões acima mencionadas são trechos dos alusivos de dois intérpretes que se apresentaram pelo Grupo Especial: Neguinho da Beija-Flor e Tinga, respectivamente.

De acordo com os cantores, o grito de guerra é o ponto de partida do desfile. É o anúncio de que a escola de samba vai dar início à sua apresentação na Marquês de Sapucaí. O alusivo possui uma mística tão poderosa que é capaz de incendiar os componentes e o público presente com poucas palavras e a entonação correta, bem motivadora e aguerrida. E a responsabilidade de motivar quase quatro mil componentes e muitos outros milhares de espectadores recai sob os ombros (e a voz) dos intérpretes, que vão “gritar” na Avenida e chamar o povo do samba para cantar junto.

Para Igor Sorriso, que se despediu da Unidos de Vila Isabel após três temporadas como cantor oficial (de 2016 a 2018) e assumiu com exclusividade a Mocidade Alegre, de São Paulo, o grito é a oportunidade de soltar um pouco da emoção, da adrenalina e extravasar. “É a identificação do cantor com a sua comunidade. Quando a gente grita, o componente fica alerta, ele sabe que vamos começar a cantoria. Eu busco cantar com verdade, com todo o amor que eu sinto pelo que faço. E meu grito faz parte disso.”

Emerson Dias, o novo intérprete do Acadêmicos do Salgueiro, e Ciganerey, puxador da Mangueira, acreditam que o grito de guerra não é apenas o ponto de partida, mas também o ápice do nervosismo do desfile.

“É o start, né?”, afirma Emerson. “É a chance que você tem de atingir aquele componente que ainda está meio desligado.”

Ciganerey completa: “E é o momento mais nervoso. É a largada, a gente não pode errar. Tem quase quatro mil componentes dependendo da gente”.

“E são quatro mil pessoas itinerantes”, retoma o mais novo intérprete da academia do samba. “Elas não ficam os 75 minutos do desfile na pista. Nós ficamos. Nossa função é dar gás pra esse cara que ainda vai entrar pra desfilar, provocar nesse componente que entrou a mesma sensação daquele que saiu.”

Daniel Silva, o cantor oficial do Império da Tijuca, afirma que o nome dado ao alusivo é justificável: é mesmo uma guerra que está prestes a começar. “Aquele que falar pra você que está tranquilo quando toca a terceira sirene, é um mentiroso. Parece que é um filho seu que está nascendo naquele momento. Parece que você está entrando numa guerra de verdade, defendendo a sua família. É uma energia indescritível a hora do grito.”

De volta à Vila Isabel, Tinga ressalta que o grito é o momento que exige mais concentração. “Tem toda uma preparação pra gente entrar ali, na Avenida. Então, se a gente começa bem, com certeza vai terminar bem. E o grito é a hora de mostrar que estamos preparados pra começar.”

Tinga diz “preparados pra começar” porque o grito indica que o trabalho dos cantores está realmente apenas começando. E a responsabilidade deles é grande.

“Depois da largada, nós ficamos cantando por mais de uma hora sem parar”, afirma Neguinho da Beija-Flor, a voz dos desfiles da azul e branco de Nilópolis há 42 anos, e considerado por muitos o maior intérprete da história do Carnaval. “Somos os maratonistas do samba. Então tem que ter fôlego. Eu já vi muitos cantores da MPB chegarem lá e não aguentarem nem vinte minutos e largarem o microfone. Não é mole não. Depois de velho eu comecei a fazer até fonoaudióloga pra não ficar sem voz”, comenta.

O compromisso não só é grande como pode ter peso dobrado. Multiplicado. Segundo o puxador do Arranco do Engenho de Dentro, Leo Simpatia, o trabalho de um intérprete é decisivo para mais de um quesito. “Eu não luto apenas por 40 pontos, meu trabalho é pra um desfile inteiro. Se eu atravesso, a bateria vai mal, o componente não se anima, a harmonia enfraquece. Por isso o grito é tão importante: dali pra frente, tá valendo. Do grito pra lá é porrada e sangue nos olhos.”

Contudo, é preciso ter atenção: Emerson Dias destaca que, mesmo sendo responsável por empolgar os componentes, servir de termômetro para o desfile e “carregar” a escola, o cantor precisa saber dosar na animação, já que os julgadores podem tirar pontos por ‘excesso de incentivo’. “O grito é o grito. É quase obrigatório. Mas é preciso tomar muito cuidado com os cacos ao longo do desfile por causa dos jurados. Sinceramente acho isso um equívoco. É uma marca do puxador, o incentivo. E eu não vejo muito sentido nessa penalização. Pelo contrário, acho até que a gente fica burocrático. Todo mundo me pergunta por que eu fico mais solto no Desfile das Campeãs do que no desfile oficial e a minha resposta é simples: no oficial eu preciso cumprir uma regra.”

 

Controvérsias marcam a origem dos gritos

Há muitas histórias sobre a criação dos alusivos, assim como seus verdadeiros precursores. No entanto, o professor e historiador Luiz Antônio Simas afirma que o responsável pela disseminação do grito foi mesmo Neguinho da Beija-Flor.

“O grito foi uma forma de apresentar uma escola que até então era pequena e desconhecida. No início, aliás, ainda era O Beija-Flor de Nilópolis, assim, no masculino. E na época, as potências do samba eram Portela, Mangueira, Salgueiro e Império [Serrano]. Quando o Neguinho mandou um ‘Olha o Beija-Flor aí, gente!’ e emendou um ‘Chora, cavaco!’, ele causa um estardalhaço”, explica o professor.

O intérprete da agremiação de Nilópolis conta a história em detalhes: “Antes de entrar pra Beija-flor, eu fazia parte de um pagode, uma roda de partido-alto chamada de ‘Camburão’. E eu fazia esse grito nessa roda, sempre gritava ‘Olha o camburão aí, gente!’. E aí, no ano do famigerado ‘Iererê, ierê, ierê’ [Samba da Beija-Flor de 1978, A criação do mundo na tradição Nagô], eu fui gravar o samba e imitei o grito do Camburão no microfone. Mas eu pensei que o cara, o Lourival Reis, não fosse gravar. Mas o cara gravou, rapaz. Então eu acabei dando início a esses alusivos. Até então não tinha, mas no ano seguinte eu dei continuidade e a Mangueira também fez. Hoje, todas as escolas no mundo inteiro fazem.”

 

Marca registrada e certificada

Neguinho da Beija-Flor é praticamente uma unanimidade entre os intérpretes: quase todos que entrevistamos para essa matéria citaram o grito do cantor como o mais arrepiante e emocionante da Avenida. Não há, inclusive, quem não associe o cantor ao seu famoso bordão. Graças a ele, o conceito se difundiu, fazendo com que os gritos se tornassem a marca registrada de todos os cantores que defendem sambas-enredo na Sapucaí. E para muitos deles, ser reconhecido pelo seu alusivo é motivo de orgulho.

 

Ouça o grito do intérprete Neguinho da Beija-Flor:

 

“Nosso grito é a chance que temos de sermos reconhecidos como nós mesmos”, afirma o cantor oficial do Paraíso do Tuiuti, Nino do Milênio. “É muito gratificante que eu seja reconhecido como Nino e que falem comigo na rua me saudando com o meu grito.”

“Tem gente que nem me chama mais pelo nome”, comenta Daniel Silva, do Império da Tijuca. “Só gritam ‘É disso que o povo gosta!’ quando eu passo na rua”, ele ri.

Para o intérprete da Alegria da Zona Sul, Igor Vianna, o grito de guerra é como se fosse um DNA. “Muitos gritam coisas parecidas, mas cada um tem características que os diferencia.” O filho de Ney Vianna, saudoso intérprete da Mocidade Independente de Padre Miguel, e considerado um dos maiores cantores que já pisaram na passarela do samba, destaca também que os puxadores não devem nunca esquecer que o grito precisa apresentar a escola. “Independente do cantor, é a escola que está chegando. É o samba, o carnaval. Nós somos apenas representantes.”

 

Gritadores de primeira viagem

Estreante como cantor oficial, Hudson Luiz teve a difícil missão de dar seu primeiro passo defendendo nada menos que o Acadêmicos do Salgueiro, e nunca havia dado seu grito de guerra na Marquês de Sapucaí como intérprete. Pela primeira vez como puxador, o cantor teve ótimo desempenho, e revela que experimentou uma das melhores sensações da sua vida.

Conversamos com Hudson antes e depois de sua estreia:

Hudson Luiz – Foto: Cristina Frangelli

Antes: “Acho que vai ser libertador. Vai ser o meu pé na porta, a realização de um sonho. Quando eu passar pela Marquês [de Sapucaí], vou escrever meu nome na história do Carnaval. Meu grito será ouvido e eternizado. E se Deus quiser, vou cantá-lo duas vezes esse ano: uma na segunda-feira e outra como campeão de 2018.”

Depois: “Meu Deus! Que emoção gigante passar pela Marquês. Eu amadureci demais só enquanto passava por essa passarela. Bons aprendizados e boas experiências. O primeiro ano é sempre de muita expectativa. De muita ansiedade. Mas graças a Deus, consegui tirar de letra a questão do nervosismo. Pensei de verdade que ficaria nervoso, mas não fiquei. Eu me preparei muito pra defender o Salgueiro. E agradeço à escola pela oportunidade.”

E Hudson teve mesmo suas preces atendidas. Pelo menos, em partes: o cantor teve o prazer de gritar também no Desfile das Campeãs, embora a academia não tenha conquistado o título, mas ficado com o terceiro lugar. Hoje, fora dos planos da diretoria da vermelho e branco para o Carnaval de 2019, o cantor busca uma nova casa, mas com a sensação de que está preparado para assumir qualquer desafio.

“Eu não cheguei aqui por acaso. Lutei muito pra chegar. Agora, sei que posso assumir qualquer outro desafio que surgir na minha frente. E vou gritar com muita emoção: ‘Tá em choque, malandro?!’”

 

A origem dos gritos dos entrevistados

“CHAMAAAA” – Igor Viana (Alegria da Zona Sul)

Igor Vianna – Foto: Gabriel Cardoso

“Já mudei algumas vezes, mas atualmente eu uso o ‘Chamaaaa’. Ele foi inspirado num amigo meu da cidade de Guarantiguetá, o Césinha. Ele fala sempre ‘Chama, chama’ e eu falei pra ele que ia usar. Pegou. Mas o povo me conhece mesmo é pelo ‘Fogo no palhaço’, que hoje não faz mais parte do grito, é mais um caco.”

 

ALÔ MINHA ESCOLA QUERIDA! – Ciganerey (Mangueira)

Ciganerey – Foto: Gabriel Cardoso

“A minha ideia veio praticamente da minha infância. Eu fazia parte de uma quadrilha junina e sempre homenageava a cor dela nos meus gritos. Quando comecei a cantar, aproveitei o gancho, e só joguei as cores e o nome da escola.”

 

EI, PSIU! – Emerson Dias (Salgueiro)

Emerson Dias – Foto: Arquivo Pessoal/Instagram

“Eu sou muito vascaíno. Fanático. E tem uma música do Vasco que eu adoro que é ‘De todos os amores que eu tive és o mais antigo’. Eu mudei o tempo do verbo, passando para o presente, e uso o ‘De todos os amores que eu tenho’. Procurei unir as minhas duas paixões, o samba e o Vasco. E o ‘Ei, psiu!’ foi uma brincadeira pra chamar atenção mesmo. Mas essa parte se difundiu muito por causa da Ivete, que gritou no meio da quadra lá em Caxias ‘Ei, psiu! Ivete é Grande Rio!’. Fiquei maluco!”

 

IH, É DISSO QUE O POVO GOSTA! – Daniel Silva (Império da Tijuca)

Daniel Silva – Foto: Cristina Frangelli

“O meu grito veio dos meus pais, seu Sidney Silva e dona Sônia Maria. Eles defendiam muitos sambas nas disputas. O ‘É disso que o povo gosta’ veio do grito do meu pai, quando ele defendia sambas no Império Serrano. E minha mãe me deu o ‘Com muita paz no coração’ e o ‘Pisa forte’. Devo aos meus pais tudo o que sou. Eles são a minha base desde os primeiros passos. E meu grito é uma homenagem.”

 

OBRIGADO, MEU DEUS! – Igor Sorriso

Igor Sorriso – Foto: Cristina Frangelli

 

“Eu tinha muita dificuldade pra criar alguma coisa, comecei muito novo. Já gritei tanta coisa. Mas o ‘Obrigado meu Deus’ é um agradecimento mesmo, porque eu sou uma pessoa de muita fé e agradeço por ter chegado aonde cheguei. E o ‘Vem comigo’ é para as pessoas virem mesmo, me acompanharem nessa parte tão importante. Já o ‘É só felicidade’ é pra associar à minha figura no carnaval, ao Sorriso do nome. E o meu bordão mais conhecido surgiu naturalmente quando eu ainda estava na São Clemente. Lá a gente se chamava de pretinho. E um dia, quando estávamos ensaiando uma bossa e acertamos, eu peguei o microfone e disse ‘Aí sim, meus pretinhos!’.

 

TÁ EM CHOQUE, MALANDRO?! – Hudson Luiz

Hudson Luiz – Foto: Gabriel Cardoso

“Isso surgiu numa brincadeira. Um amigo meu sempre falava muito isso, no intuito de perguntar se a pessoa estava surpresa com o que estava vendo. Comecei a usar a frase como bordão de final de samba, como se estivesse questionando o ouvinte sobre ter se impressionado com o que tinha ouvido. Depois comecei a usar como grito e as pessoas se acostumaram. Não é um grito muito comum, mas ao menos é autêntico.”

 

O CORO VAI COMER! – Leo Simpatia (Arranco do Engenho de Dentro)

Leo Simpatia – Foto: Gabriel Cardoso

“Meu grito foi elaborado com o tempo. Ele não surgiu, eu o construí. Tem alguns formatos e métricas de gritos que já estão batidos. Tentei construir algo que fosse diferenciado. Usei palavras diferentes do habitual. ‘Essa é a escola do nosso coração’ é uma forma de impulsionar a comunidade que estou representando.”

 

SOLTA O BICHO! – Tinga (Vila Isabel)

Tinga – Foto: Cristina Frangelli

“Uma vez, em 2005, eu estava conversando com o grande compositor da Vila, André Diniz, e disse que a escola estava ensaiando muito bem e que vínhamos com força total para o nosso retorno ao Especial. Falei pra ele que a Vila ia ser o bicho na Avenida, e prometi que iria gritar ‘solta o bicho’ quando fosse entrar. O André ficou maluco, insistiu muito pra que eu fizesse, porque isso poderia se tornar a minha marca. Quando gritei, todo mundo na hora se assustou, mas depois acabou ficando.”

 

É ESSA PARTE QUE ME EMOCIONA, GENTE! – Nino do Milênio (Paraíso do Tuiuti)

Nino do Milênio – Foto: Gabriel Cardoso

“Todo mundo sabe que meu grande ídolo do samba é o falecido Jackson Martins. É minha maior influência. Eu nem sabia cantar samba-enredo, aprendi vendo Jackson cantar. Tudo pra mim era Jackson, achavam até que eu era filho dele. Me chamavam até de Jacksinho. Mas ele era amigo do meu pai e eu cresci vendo-o cantar. Meu grito é uma homenagem pra ele. Ele falava ‘Chegou Caprichosos’ e eu criei ‘Vem comigo, Tuiuti’; ele falava ‘Vem no batuque, bateria’ e eu criei ‘Chega brincando, bateria’; ele gritava ‘Vai à luta, meu povo’ e eu dei continuidade, criando ‘A luta continua, meu povo’. E o ‘Essa parte que me emociona’ é uma referência ao que ele falava muito nas gravações e na Avenida, quando ele dizia ‘Dá vontade até de chorar’.

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