Foto: Página oficial Mestre Ciça/Facebook

O Resgate continua

 Vencedor de cinco prêmios, Mestre Ciça credita sucesso da bateria da União da Ilha ao resgate da batida tradicional: “estávamos desacreditados”

Mestre Ciça e seus comandados chegaram tranquilos e sorridentes à quadra da Unidos da Tijuca. E não é pra menos: eles subiriam ao palco para receber mais um prêmio, desta vez o Samba-Net de Melhor Bateria. Sob os gritos de “Ciça! Ciça!” da plateia, o anúncio foi feito. Esse era, enfim, o ano da redenção do “Caveira”.

Mestre Ciça no Prêmio Samba-net na Quadra da Unidos da Tijuca (20/05/2017) Foto: Pablo Sander

Em seu terceiro ano à frente da “Baterilha”, o trabalho incansável de resgate do mestre, de 60 anos, e de seus diretores finalmente foi reconhecido. Mesmo não garantindo os 40 pontos (o quesito perdeu 1 décimo no segundo módulo), a bateria da tricolor insulana foi eleita a melhor do ano. Além de faturar o Prêmio Samba-Net e o merecido Estandarte de Ouro – o primeiro do mestre –, Ciça e seus comandados ainda levaram mais três prêmios pra casa. Até agora, porque ainda tem mais duas indicações, não percam as contas.

“Estou feliz, foi um ano muito bom. Eu sempre faço uma análise (da apuração) junto com a minha diretoria e com os ritmistas. Quando tem algum problema eles sempre falam. Dessa vez não falaram nada, até agora não entenderam porque perdemos esse décimo. Uma diferença de dois metros entre uma cabine e outra: um dá 9.9, o outro dá 10.0. Complicado, né? Mas mesmo assim deu tudo certo, a molecada trabalhou bem”, avalia o mestre.

Mesmo assim, o décimo perdido não tirou o sono de Mestre Ciça. Desde que iniciou o trabalho em 2015, o Caveira sente que o ritmo evoluiu e está próximo do que considera ideal. Entretanto, ele destaca que, mesmo fazendo um trabalho de resgate, é preciso continuar inovando. “O primeiro ano foi complicado. Não deu pra colocar tudo que eu queria. Aos poucos fui conhecendo a rapaziada e a coisa foi melhorando. Em relação ao ano passado, fizemos alguns ajustes, um detalhe ou outro que tinha que mudar. Quisemos arriscar mais também, eu gosto de complicar. Colocamos os atabaques porque o enredo pedia, e o samba também. Se for pra botar só feijão com arroz, eu nem boto”.

O trabalho de resgate, como o próprio nome já sugere, consiste em resgatar o swing tradicional de uma bateria que vai se perdendo com o tempo. Todo mestre de bateria que inicia um trabalho faz alguma alteração e essas modificações vão, pouco a pouco, tirando a identidade da batida da escola. O objetivo de Ciça foi justamente trazer de volta o ritmo original da bateria da União da Ilha e para isso foi preciso fazer um trabalho específico com cada um dos naipes da orquestra.

“As pessoas precisam entender que aquela bateria dos anos 90 não vai mais voltar. É um novo formato”, afirma o diretor de marcações, Marcelo. “O que estamos fazendo é tentar chegar o mais próximo disso, através de algumas mudanças. Mas a bateria precisa ter a cara do Ciça. A afinação das marcações é dele. A batida de caixa é da Ilha. E assim o trabalho tem dado certo.”

Foto: Portal Ilha Carioca

Para Leandro, diretor de caixas, o trabalho de resgate não é apenas com instrumentos, mas com ritmistas também. “Não é só resgatar uma caixa ou uma marcação, é resgatar a alma da União da Ilha. É o resgate do respeito aos ritmistas mais antigos, é o resgate do cuidado com os ritmistas mais novos que estão surgindo. É o resgate de um conjunto de elementos que compõem a bateria. Hoje, 90% dos nossos ritmistas são insulanos. Queremos chegar aos 100% e o resgate tem sido fundamental pra isso”, completa.

As caixas inclusive foram a maior dificuldade, na avaliação do Mestre Ciça. O naipe foi o responsável por tirar dois décimos da bateria em 2016, no terceiro módulo. “Puxei o Leandro pra me ajudar. Trabalhamos muito em cima  das caixas. Foi um trabalho incansável, feito às segundas, terças e quartas, sempre focados em corrigir. Os outros naipes, a gente ia intercalando nos dias da semana. Num dia era marcação, no outro tamborim, depois o chocalho… mas a caixa estava sempre lá, em todos os ensaios, porque é o naipe que mais mudou e é o naipe que dá o parâmetro e o diferencial da bateria da Ilha.”

A ala de caixas da escola realmente passou por uma grande reformulação. As caixas de 12 polegadas deram lugar às caixas de 14’’. Segundo o mestre, a batida da Baterilha só funciona com as caixas maiores, por conta da afinação mais grave. “Com caixa embaixo tem que ter uma afinação mais grave, e isso só a caixa de 14 (polegadas) dá. Esse ano eu botei 100 caixas de 14, todas embaixo.”

O naipe de marcações também deu dor de cabeça para Ciça. Cria da Estácio de Sá, o mestre precisou de sete meses para encontrar a afinação ideal dos surdos e reduzir o andamento (bpm). “Eu levei a minha afinação pra lá. Quando se tem uma bateria muito pegada, como eu gosto, você pode botar a afinação dos surdos mais grave. Mas uma bateria como a da Ilha pede uma afinação mais baixa. Então teve que ser algo médio, um meio termo. Foi muito difícil achar isso, não é fácil achar uma afinação pra batida de caixa da Ilha. A escola tradicionalmente tinha uma afinação mais baixa, porém eu achava que podia melhorar se botasse a afinação um pouquinho mais alta.”

Ainda que seja difícil e contestado, o resgate tem trazido muitos pontos positivos. Além de retomar a batida original, o trabalho trouxe também a confiança e a alegria de volta aos ritmistas. “O mais importante foi resgatar a velha bateria da Ilha, que estava desacreditada. Muita gente não desfilava mais, as mudanças foram afastando alguns ritmistas que se identificavam com a batida da escola, os grandes mestres que passaram por lá se afastaram. Então esse resgate foi importante pra eles. A gente tem que ensaiar e manter o patamar elevado não só pelos prêmios, mas por essa galera que queremos aqui de volta. Eu confesso que esperava mais (ritmistas retornando). Muita gente, por questão de idade, acabou não voltando. Felizmente, hoje eu tenho muito garoto na bateria que aprendeu a batida. Aí os veteranos vão mesclando com essa garotada e o trabalho fica bom. Mas ainda tem muito antigo pra voltar, e a porta está sempre aberta pra todos eles”, enfatiza o mestre.

Foto: Página oficial Bateria União da Ilha

Relação com diretores e ritmistas pesou na escolha de Mestre Ciça em continuar na Ilha

Além das boas notas e do prestígio, Mestre Ciça foi enfático ao afirmar que sua vontade de permanecer foi também graças à relação com seus comandados. “A gente costuma brincar que é o ‘Bonde do Caveira’! Não tenho do que reclamar deles, foi uma bateria que me abraçou. Já não estava nos meus planos sair, mas eles ainda fizeram um movimento pra eu ficar. É isso que importa pra mim. Esse carinho é uma coisa que não tem preço, é uma coisa que mexeu comigo, com a minha vida, com o meu dia a dia”, afirma o mestre, emocionado.

“Ele é o que mais sacaneia, o que mais brinca. O convívio com ele é sensacional. O time todo pode chegar nele pra pedir alguma coisa, sugerir alguma coisa. É um mestre que escuta todo mundo, aberto a ideias novas”, afirma o diretor de marcações, Marcelo. “E é um cara que tem estrela. Experiente, tem umas sacadas que ninguém tem. No último ensaio do ano, por exemplo, ele pediu pra enfileirar os atabaques na frente. Assim, do nada. Sendo que passamos o ano inteiro ensaiando com eles lá atrás. Ficamos desesperados, era o último ensaio, né? Mas foi a melhor sacada de todas, porque os atabaques vinham apoiados em rodinhas, e na hora de andar, elas batiam no pé de todo mundo, atrapalhava muito as marcações da última fileira. Essa mudança além de não incomodar ninguém favoreceu a visibilidade do naipe que colocamos especialmente para o desfile. O Ciça é um gênio, um mito.”

Uma de suas comandadas, a ritmista Rita Rosana, da ala de chocalhos, afirma que todos adoram o Caveira. Segundo ela, os naipes nunca foram tão unidos. “Isso nunca aconteceu. A bateria está interagindo, a galera está mais unida. Formamos uma família novamente. Sem contar que a bateria vem evoluindo sensivelmente. Ritmo gostoso, cadenciado. Ele resgatou a Baterilha, está fazendo um trabalho muito bom”, afirma a ritmista.

Vida longa ao Bonde do Caveira!

 

 

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