Carnavalesco Jack Vasconcelos Paraíso do Tuiuti Carnaval 2018 - Foto: Ewerton Pereira

Entrevista com Jack Vasconcelos apenas sobre seu enredo

Completando 5 anos à frente da carnavalização do Paraíso do Tuiuti desde seu retorno, Jack Vasconcelos vive seu momento mais maduro como carnavalesco, e, acima de tudo, mais autêntico. Em 2019, o artista leva para avenida “O Salvador da Pátria”, mais um enredo autoral, contando a história do Bode Ioiô, que foi eleito vereador na cidade de Fortaleza.

Deixando de lado o tom crítico, distanciando-se de qualquer juízo de valor e fugindo de comparações com a realidade, a entrevista a seguir aborda exclusivamente o enredo de Jack.

Afinal de contas, é só Carnaval.

Gabriel Cardoso/Carnavalizados: Qualquer semelhança do seu enredo de 2019 com a realidade é mera coincidência, certo?

Jack Vasconcelos: Lógico! (risos) Bem, talvez sim, talvez não. É muito cafona o que eu vou falar, mas é essa coisa da arte que imita a vida e a vida que imita a arte. Uma influencia a outra de alguma forma. E a Escola de Samba é uma arte muito viva. Ela tem esse poder de trocar o assunto abordado anualmente e ter sempre um diálogo fresco para as pessoas. É uma maneira muito viva de se manifestar artisticamente…

GC/Carnavalizados: …E que pode proporcionar essa sensação de que já se viu isso em algum lugar.

JV: Exato! “Um bode barbudo, baixinho, de origem pobre, amado pelos humildes e por intelectuais.”

GC/Carnavalizados: O Carnaval de 2019 seria, de certa forma, uma continuação de 2018? Uma tentativa de explicar o que não ficou muito claro ano passado?

JV: Ele é uma continuação natural não só do ano passado, mas do que eu, como artista criador, e o Tuiuti, já estamos falando há algum tempo. Desde que eu voltei pra escola, eu ouço do presidente [Renato Thor] uma frase que eu não ouvia há muitos anos: “e aí, o que você tá pensando de enredo para o ano que vem?”. Eu não tinha esse espaço antes. A escola escolhia um tema e eu atendia ao que era pedido, tentando dar o meu recado como artista. E isso foi um divisor de águas na minha carreira, pois pude falar aquilo que eu queria falar e que quero expor para a massa.

Desde o Hans Staden (“Curumim chama cunhantã que eu vou contar…”, 2015), dessa construção da visão exótica, da cultura latina subjugada como cultura de segunda categoria, um olhar de que somos primitivos. No ano seguinte, com o Boi Mansinho (“A Farra do Boi”, 2016), eu falo da manipulação de crenças, desse coração grande que a população brasileira tem pra abraçar questões e a relação que o brasileiro tem com o divino, e como a boa-fé das pessoas pode ser explorada. Depois, a gente fala da Tropicália (Carnavaleidoscópio Tropifágico, 2017). Por motivos óbvios, era necessário avisar as pessoas que nós somos multifacetados por natureza! Nós somos encontros de culturas, temos muitas caras. Não adianta querer colocar o brasileiro num padrão, porque nós somos o Macunaíma. A gente vai se transformando no que é preciso para sobreviver. E a Tropicália fala disso o tempo todo, mistura o erudito e o que a erudição acha que é de baixa cultura, o popular.

Naquele momento já se desenhava um cenário difícil pra gente. Inclusive, a sinopse era em forma de manifesto. Era muito importante dizer isso naquela hora.

Depois, com esse carnaval de 2018 (“Meu Deus, Meu Deus, está extinta a escravidão?”), não cabia pra uma escola que vem com essa pegada, com essas análises, fazer apenas uma cópia de um livro didático. A própria escola ia cobrar uma reflexão; e foi o que a gente fez. Tenho consciência de que não agradei todo mundo, mas era necessário que a gente discutisse sobre.

GC/Carnavalizados: Então, o maior legado desse desfile de 2018 do Tuiuti foi a discussão?

JV: Totalmente! As pessoas poderem falar sobre isso, concordando ou discordando. Algumas tendo uma epifania, percebendo coisas que estavam adormecidas.

GC/Carnavalizados: E o tal do Bode Ioiô?

JV: Ele usa esse bom humor do brasileiro, esse lado da molecagem pra falar de um assunto muito sério: a exploração da população pobre por uma elite, pelas pessoas que regem o poder. Esse poder troca de mãos e troca de nomes. E o Bode Ioiô é uma história que se passa lá entre 1915 e 1922, quando ele é eleito.

É um enredo muito rico porque eu falo de um retirante, um sobrevivente. Ele foge do sertão com uma população gigantesca, quase que de refugiados. Essas pessoas foram guardadas em campos de concentração, e esse bode consegue se estabelecer dentro da população mais carente, sobrevivendo a um tempo de reformulação de uma cidade. O Bode pega a higienização no auge. O pobre não é mais bem quisto. A cultura popular é abafada.

Ele sobrevive a isso tudo, ganha notoriedade, os ricos e a elite precisam aturar o cheiro do bode por onde ele passa. Nos lugares chiques, finos e remodelados, o bode os faz lembrar de suas origens, da presença dos excluídos, do pobre trabalhador, do cheiro de suor de quem trabalha.

GC/Carnavalizados: E aí essa população trabalhadora votante, pra mostrar uma insatisfação, vota no bode.

JV: O bode é eleito! Isso é um escárnio! Um deboche em cima do poder estabelecido, dos coronéis que mandam a população votar em quem eles querem.

GC/Carnavalizados: Engraçado, parece que a gente discute os mesmos problemas de 1915…

JV: Só parece, né? Mas eu acho que o Bode Ioiô ajuda as pessoas a entender o que a gente está querendo dizer há algum tempo.

GC/Carnavalizados: Não vamos comparar isso com a nossa realidade, é uma situação totalmente hipotética: você acha que o bode hoje teria condição de chegar ao pleito e concorrer ou você acha que a elite o impediria, caso tentasse assumir o lugar dele enquanto personagem que representa uma população que queria que ele estivesse lá?

JV: Eu acho que ele não conseguiria… quem detém o poder do dinheiro controla tudo. Há maneiras de manipular a informação e o pensamento através do que se consome. Não se analisa nada, é cultivado nelas [as pessoas] a rejeição à busca pela informação correta. Isso não é de hoje. Não é um assunto querido, a política. Isso faz com que se torne fácil fazer uma pessoa defender ideias que vão contra os próprios interesses dela.

GC/Carnavalizados: O discurso hegemônico.

JV: Sim. O bode seria sabotado pra não assumir. E até acredito que as pessoas ficariam contra ele, mesmo ele tendo uma representatividade e uma origem como a delas.

GC/Carnavalizados: Talvez ele fosse até preso sem provas.

JV: O importante é fazer o plano dar certo.
Não é uma questão de procurar culpados, é mais uma manipulação das peças de xadrez. Um jogo do qual participamos das jogadas, mas somos empurrados e forçados a fazê-las. Eu não sei se o Ioiô resistiria às Fake News dessa época do ego.

Estamos indo para uma fase da cultura muito perigosa. E a verdade pode ter dois lados nessa ditadura da felicidade.

GC/Carnavalizados: E talvez seja demais um bode nordestino, de aparência e origem pobre, tentando pleitear aquele espaço de representação.

JV: Sim, porque, no meu enredo, as pessoas odeiam espelhos. Elas querem se ver com filtro, o mundo bonito. E a figura do bode mostra a origem do que elas são.

GC/Carnavalizados: Voltando à questão do poder: no seu enredo, o poder está nas mãos de um grupo, e esse grupo começou a entender o jogo e começou a usar armas pra se colocar lá e se firmar lá. E como você disse na sinopse, “votar em animais é e sempre será possível”. Você acha que, hipoteticamente, na fábula do seu enredo, a elite entendeu o jogo e poderia colocar um asno ou um jumento do outro lado pra concorrer à altura?

JV: Com certeza. À altura já não sei. Mas a manipulação do discurso é uma arma muito potente, e reverte a fala do seu oponente pra desmerecer o que ele estava falando…

GC/Carnavalizados: Fazendo pensar que o jumento é inteligente…

JV: Sim. As pessoas querem que isso aconteça, porque elas não suportam a ideia de estarem enganadas.

GC/Carnavalizados: Mas pela sua descrição do enredo, ainda existe uma parcela significativa da população que acredita no bode. Como você faz essa contraposição?

JV: O bode do meu enredo é uma surpresa. Ninguém contava com essa resposta da população. Existe uma preocupação de que essa insolência não se repita. E de uma certa maneira, o Bode Ioiô representa a insolência, a teimosia, a malcriação. Essa resistência.

O bode entra num lugar de metáfora que atende a muitos caminhos. Ele representa a força do poder popular que foi abafada. Nesse contexto, o bode tem esse diálogo com os dias de hoje.

O bode do meu enredo não toma o poder por motivos óbvios: ele simplesmente é um quadrúpede (risos)! Não metaforicamente falando, como se, nesse momento, estivéssemos trocando um quadrúpede por outro.

GC/Carnavalizados: Incompatibilidade de espécies!

JV: Sim! Mas é o que ele simboliza. Essa pessoa que saiu da fábrica, da senzala, do boteco, de trás do balcão. Esse popular que se atreveu a botar a cara e ser um líder, falar dos interesses da população mais pobre. E falar dos excluídos, historicamente, incomoda muita gente. Incomoda até quem não se acha pertencente a essa camada, por consumir o tempo todo uma “propaganda” de que eles são diferentes. Com a sensação de que são um pouco mais acima, com possibilidade de chegar ao topo…

GC/Carnavalizados: …Só que esse topo nunca vai chegar.

JV: Nunca vai chegar! Não existe essa possibilidade, mas é vendido que sim. Que é só trabalhar que as oportunidades aparecem.

GC/Carnavalizados: Isso é uma coisa muito peculiar, porque brasileiro adora uma história de superação. Mas o Bode Ioiô não é uma história de superação? Por que as pessoas não gostariam de vê-lo se superar?

JV: Porque a superação só é um bom exemplo se ela tem uma determinada cara, um modelo específico. Ela nasceu pra isso, só estava no lugar errado. Mas se esse pobre que chegou lá tem a cara do pobre, a cor do pobre, fala como pobre, essa pessoa não tem tanto valor assim.

E agora eu não estou falando metáforas.

Eu tive uma conversa muito dura com uma pessoa que eu amo porque falei isso pra ela. Porque ela pensa que é uma coisa que na verdade não é. E está jogando contra os próprios interesses por não querer enxergar. E é difícil lutar contra isso porque é feito sistematicamente há séculos!

GC/Carnavalizados: Eu me imagino na situação do popular, durante a trajetória do bode: eles vinham sendo enforcados ao longo dos anos. Nem diria que não daria pra piorar, pois sempre dá pra surgir um alçapão no fundo do poço. Mas era um momento crítico de asfixia, porque não era uma construção amparada apenas pelos interesses de uma elite da época, mas também respaldada midiática e juridicamente. São outras esferas que exerciam poder junto com ela.
Será que essas pessoas “anti-bode” não seriam, não apenas manipuladas, mas também cercadas? Com uma sensação de que não há perspectiva?

JV: As pessoas são minadas com um objetivo. Há várias maneiras de dizer um mesmo fato. Mas a opressão pode ter vários caminhos, e a maneira de resistir a ela também!

GC/Carnavalizados: Você traz isso muito claramente nos enredos de 2017 e 2018. Não está apenas no discurso, mas na forma como o indivíduo se enxerga, na peça publicitária, no vizinho, no trabalho. Em todo lugar que ele vai tem algo que o coloca naquela posição de dominado, de oprimido.
Essa perspectiva chega também ao carnaval de 2019?

JV: Sim, esse enredo é muito rico em termos de possibilidades de imagens. Acredito que mais até que do ano passado. Eu percebo que as coisas ficaram mais visíveis no final do desfile do ano passado, com o último setor mais chargista, mais exposto. E como esse enredo de 2019 já habita o campo da fábula, ele me dá possibilidades de fazer imagens mais claras e mais fortes. É lúdico, mas as verdades estão lá.

GC/Carnavalizados: E o enredo bate muito na tecla da resistência, da força…

JV: Sim, e que essa força não precisa ser física, há muitas maneiras da resistência acontecer.

GC/Carnavalizados: O teu carnaval desse ano começou como um movimento cultural, pois as pessoas foram saber sobre o bode, a história do Ioiô. Mas fluida e espontaneamente, o enredo tomou esse aspecto político. Seria uma transição natural, dentro do momento do Carnaval que estamos vivendo?

JV: Esse enredo me dá uma possibilidade de carnavalizar mais, pois ele tem essa pitada de humor. É lúdico desde o início, mas é resistência do início ao fim. A princípio pode parecer estar no lugar comum, mas com a evolução do enredo você vai vendo que não. A gente aborda voto de cabresto, curral eleitoral… questões que vamos falando no decorrer do enredo de uma forma lúdica. Mas é uma história de resistência do início ao fim, como falei.

GC/Carnavalizados: De uma forma bem objetiva: que ferida você quer expor nesse enredo do bode?

JV: Essa coisa da seca, do sertão, pode ser entendida de diversos aspectos. Não precisa ser um histórico de vida que necessariamente tenha surgido disso. Mas de uma pessoa que vai sobrevivendo às intempéries da vida e construindo alguma coisa, lutando para sobreviver e manter o pouco que conseguiu. Porque [a vida] não para. O chegar lá, pra gente, não existe. Tem gente que passa fome pra ter um produto que te dá status, acesso VIP. Nada roda nessa porcaria dessa roda viva se não for pra te escravizar.

GC/Carnavalizados: Por que, com isso, você consegue controlar a natalidade de “novos bodes”, né? Que podem assumir essa postura de liderança.

JV: Acho que é bem por aí. E é muito difícil ter que admitir essas coisas. Porque, independente do trabalho como carnavalesco, é muito difícil ver essas coisas acontecerem. Eu não sou o dono da verdade, mas não tente me convencer de que isso tá certo. Mas é bacana entender tentar entender um pouco de tudo, ler tudo, porque eu não posso me fechar dentro do meu programa de edição do computador. É importante esse estado de desconstrução o tempo todo.

GC/Carnavalizados: E o fazer carnaval, de certa forma, é essencialmente isso, né…

JV: Sim! Ainda mais que você destrói o antigo para construir o novo. Isso é uma postura que deveria ser levada do carnaval para a vida. Você pode destruir tudo e começar de novo. Mas a gente não é incentivado a fazer isso, a descobrir o novo, a experimentar o diferente. A gente tá passando de novo coisas pelas quais já passamos antes! Coisas que deviam estar superadas, apenas em documentários. Pior: são vistas novamente como solução.

GC/Carnavalizados: O carnaval vem dando claros sinais de que vai partir pra cima desse sistema que está se instaurando. Deu os primeiros passos em 2016/2017, em 2018 encorpou, e agora, em 2019, a gente pode dizer que a veia está exposta. As histórias que a história não conta, a história que se repete… Como você enxerga esse momento, esse espectro político de incertezas, enquanto artista?

JV: O Fábio Fabato fala muito que as escolas de samba são o divã do Brasil. É onde o Brasil deita e se analisa. É natural que esse tipo de reflexão aconteça mais fortemente agora, e que ele esteja aparecendo nos últimos anos com mais clareza. Porque simplesmente é o que está acontecendo nas ruas, na internet e dentro da sua casa. E a escola de samba, à sua maneira, sempre foi espelho da sociedade. Em momentos mais sutis, outros mais violentos, mas sempre retratando o todo em suas mais diferentes visões. Vertentes reacionárias, revolucionárias. O importante é que a gente fale tudo enquanto pode, porque não sei até quando vai poder.

GC/Carnavalizados: Depois desse desfile do Tuiuti de 2018, pelo alcance que ele teve fora do Brasil, a escola de samba mostrou que ainda é forte, que ainda é ouvida.

JV: É só fazer algo que toque a população. O vampirão, a abertura da escola, tudo isso foi muito aceito porque as pessoas queriam que isso fosse falado. O trabalho fantástico que o Leandro [Vieira, carnavalesco da Mangueira] vem realizando. A Rosa [Magalhães, carnavalesca da Portela] falando sobre os refugiados e esse ano vai falar de Clara Nunes. A volta desse importante enredo da São Clemente. Os enredos do Acesso [Grupo A], que não deixam nossa memória morrer. Isso é um trabalho consciente desses artistas. Não precisamos ser panfletários: estamos nos posicionando. E o importante é ter mais gente pra se posicionar.

JV: Agora, Gabriel, cuidado com o que você vai publicar, hein. Porque eu só falei de bode, é tudo invenção!

Fica tranquilo, meu amigo Jack. É só carnaval mesmo.

Deixar uma resposta

Seu email não sera publicado. Campos obrigatórios *

*