Carnavalesca Márcia Lage - Foto: Cristina Frangelli / Site Carnavalizados

Série Barracões 2020: Portela viaja ao Paraíso dos Índios Tupinambás para reencontrar uma Guanabara sem males

Nos últimos dias, com a intenção de conhecer os projetos artísticos que vão encantar os olhos atentos do público na Marquês de Sapucaí, o Carnavalizados tem realizado encontros com os carnavalescos das escolas de samba do Grupo Especial para desvendar os mistérios por trás dos enredos. Nossa equipe esteve no barracão da Portela, na Cidade do Samba, onde foi recebida por Márcia Lage, que assina o carnaval portelense ao lado de Renato Lage, uma dupla experiente, mente criativa de desfiles modernos, fascinantes e inesquecíveis.

Em 2020, a azul e branco de Oswaldo Cruz e Madureira vai apresentar o enredo Guajupiá, Terra sem Males, que trata do paraíso perdido dos índios Tupinambás, que acreditavam na existência de uma terra exuberante, sem qualquer mazela, onde encontrariam o bem-estar e a felicidade. A águia faz um voo ao passado para confirmar que este paraíso fica bem aqui. O Guajupiá que os Tupinambás procuravam, descobriram ao avistar a Baía de Guanabara e sua intensa beleza natural, uma região de águas límpidas e fauna abundante, cercada por uma floresta de rica diversidade, morros e montanhas que abrigavam nascentes de rios e cachoeiras. A cidade que hoje é dita maravilhosa cresce sobre um recanto paradisíaco e, sem olhar para trás, transforma este lugar, com aterros e devastações à maior riqueza descortinada por seus antepassados, os verdadeiros fundadores de um ambiente sem igual.

“Nós vamos representar o Guajupiá, que é o ideário de paraíso dos Tupinambás. Quando eles chegam à Baía de Guanabara, relacionam a exuberância da natureza que encontraram com esse Guajupiá. (Márcia Lage)

E assim, os carnavalescos Renato e Márcia Lage buscam recriar um passado remoto, na tentativa de reconstruir o encantamento que a Guanabara causava em quem a avistava ainda intocável.

“O enredo que nós vamos levar para a avenida retrata o Rio de Janeiro de dois mil anos atrás. Mas nós fazemos isso de maneira simbólica, imaginada.”

A inspiração para o enredo brotou da leitura do livro O Rio Antes do Rio, do escritor Rafael Freitas da Silva, que relata “a Guanabara Tupinambá e suas aldeias ancestrais. A história do primeiro carioca, dos exploradores, conquistadores e moradores pioneiros”. Um livro dedicado a entender a fundação do Rio de Janeiro, que parte dos primeiros habitantes e cruza as batalhas travadas entre portugueses e franceses pela posse do território. Márcia Lage indica essa narrativa como o ponto de partida das ideias desenvolvidas para o carnaval da Portela.

“A gente pegou esse gancho e tentou imaginar como os índios Tupinambás, primeiros moradores deste lugar, retratariam o Rio de Janeiro. É o Rio ao modo deles”.

Barracão Portela Carnaval 2020 – Foto: Cristina Frangelli/ Site Carnavalizados

Para entender o olhar do outro, além de pesquisas teóricas, os carnavalescos visitaram uma aldeia em Maricá para conhecer as tradições que atravessam gerações e se mantém nos dias de hoje entre as tribos.

“Eu fui visitar uma aldeia em Maricá e eles falam Tupi Guarani o tempo todo. Óbvio que lá tem carro, moto e outros utensílios, mas eles valorizam o modo de viver tradicional. Ainda pescam e colhem o que comem. Preservam esse passado e essa cultura, revela a carnavalesca.”

O aprofundamento neste universo transformou a carnavalesca, hoje com um novo olhar para o mundo à sua volta, para a forma como lidamos com o espaço, com o outro e com a relevância em preservar o conhecimento dos nossos antepassados.

“Essa pesquisa só me fortaleceu como brasileira, como carioca. Só de saber que temos este pertencimento, gera um outro olhar sobre o lugar, a cidade, e sobre nós mesmos. A nossa ideia é propor um despertar para essa grandiosidade da cidade e do seu povo. Talvez, se os ensinamentos desse povo nos fossem transmitidos desde a tenra idade, nós tivéssemos lutado para evitar uma série de intervenções que foram feitas dentro da cidade. Se a gente tivesse consciência de manejo da terra, de preservação, seria diferente. Então, veremos também um pesar por terem enterrado a nossa cultura, a nossa história e um povo que era o dono da casa, que tinha muito a nos ensinar e nós não tivemos a chance de aprender.”

Tantas transformações no espaço, no comportamento e na cultura dão um tom crítico ao enredo, que pergunta: “o que fizemos de ti?

“Se a gente tivesse sido treinado por esse povo, teria uma interferência diferente com aquilo que é nosso. Nós respeitaríamos mais essa casa, que é nossa. Que tipo de luta a gente teria condições de ter se tivesse esse manancial de conhecimento?”

A crítica, entretanto, surge de um processo natural. A artista revela não ter sido essa a intenção ao longo da construção do enredo, mas que o entendimento e os acontecimentos com os quais nos deparamos tornam inevitável a reflexão.

“É uma crítica suave. Um comparativo de uma selva de pedra que foi erguida sobre esse Rio de Janeiro que antes era um paraíso e hoje enfrenta tantos problemas. A Guanabara sucumbiu, enterrou os índios. A gente não quer militar. Mas acaba fazendo indiretamente um enredo que milita por uma coisa que está aí, óbvia. A realidade só vem atestar a crítica, mesmo ela não sendo o nosso desejo. A gente não tomou esse caminho, mas os acontecimentos acabam aproximando o enredo e a reflexão que ele tem desse lado mais militante, porque as coisas estão sérias. Agora nós temos a questão da água, por exemplo. Uma cidade cercada de água por todos os lados e a gente não tem água para beber. Como?!, questiona a artista”

Apesar de todo o enredo despertar uma reflexão sobre os tropeços que nos trouxeram ao estado atual, o Rio de hoje virá retratado apenas na parte final do desfile.

“Teremos o ponto de vista do Rio de Janeiro que outrora foi um paraíso: um habitat solar, luminoso, farto, colorido, sem males. E agora vivenciamos essa cidade com males, acinzentada, tortuosa. Já não tão solar, porque a gente anda 24h com uma nuvenzinha do medo na cabeça. À medida que olhamos esses dois aspectos pensamos nos donos da terra, os tupinambás. Eles tinham um conhecimento, uma integralidade e respeito com a natureza. Infelizmente a gente não aprendeu nada com eles. A gente desconhece a cura. Aquele mato que dá atrás de casa pode curar uma alergia, um resfriado e a gente não sabe. Pode estar debaixo do nosso nariz. Quantos desses ensinamentos poderíamos aplicar na prática.”

Pensado para retratar o olhar nativo sobre o nosso lugar, o desenvolvimento do enredo da Portela terá a representação indígena de ponta a ponta.

“É índio do início ao fim”, confessa Márcia Lage.

Barracão Portela Carnaval 2020 – Foto: Cristina Frangelli/ Site Carnavalizados

A maneira como esses índios serão retratados ao longo das alas é que vai diferenciar os setores, de modo a proporcionar a leitura desejada por seus criadores. Uma diferenciação que foi desafiadora no projeto para o próximo carnaval.

“Tantas maneiras de vestir esse índio foi, sim, um desafio. Cada um vai sendo colocado dentro de um dizer, de um conceito. Temos só índios, mas tem índio de tudo quanto é cor, de tudo quanto é forma. Não é um índio só de cocar e pena, é um índio que diz alguma coisa a respeito da temática: são mais conceituais.”

Para contar essa história os carnavalescos beberam na fonte dos próprios personagens que descrevem. A dupla, que é conhecida no carnaval pela inovação e modernidade dos seus traços e alegorias, foi buscar na arte indígena a inspiração para suas representações.

“Os índios em seus artefatos, seja nas estruturas de madeira, nos cestos ou mesmo nas flechas, tem um olhar sintético sobre a natureza. Nas formas como representam os animais e as plantas, com os desenhos de estampa. São gráficos, lineares.

Nós vamos trazer esse olhar mais síntese da natureza. Usamos esse artifício gráfico deles, esses grafismos. E um colorido que estoca um pouco essa coisa do idílico, do sonho.”

O que podemos esperar de moderno na Portela, portanto, é essa interpretação gráfica da arte indígena, com a qual Renato e Márcia vão criar seus traços para descrever um olhar conceitual sobre a história que querem contar.

“Como a gente está fazendo um tratamento tentando encontrar o olhar do índio sobre essa natureza, essa exuberância; como o índio tem um olhar sintético; e como essa plasticidade mais moderna é sintética: foi muito tranquilo de chegar ao nosso conceito. A gente usa de uma linguagem mais sintética, mais linear. Uma plástica não tão acadêmica, tão naturalista e realista. É uma plasticidade que a gente gosta, mais abstrata. A gente abstrai do realismo formal e trabalha mais com a síntese das formas, com uma pegada mais moderna.”

No que se refere ao uso das cores, os carnavalescos enfrentam o desafio do horário do desfile. Sétima escola do domingo, a Portela vai atravessar a Sapucaí no amanhecer da segunda-feira de carnaval.

“A gente desfila de manhã, então a gente vai dar uma esquentada na mata. Vamos vir com uma cor mais ácida para causar esse efeito.  A mata que a gente está usando, por exemplo, não é um verde puro: é azul. A gente usa o artifício de um amarelo luminoso e aquilo esquenta. Você vê verde, mas é azul.”

A paleta de cores a ser adotada, aliás, é uma das grandes curiosidades em torno do desfile da Portela. Os carnavalescos tem sua identidade ligada à Mocidade e, mais recente, ao Salgueiro, onde passaram longos anos. Nos dois últimos carnavais à frente da Grande Rio encontraram um pavilhão que carrega tanto o verde quanto o vermelho, de grande intimidade. Agora tem nas mãos o azul para dar vida à uma nova aquarela.

“Depois de tantos anos em uma escola vermelha e branca nós viemos para o azul, que é uma cor fria. Mas vocês vão ver que a gente consegue aquecer ele também.”

Sobre a teoria das cores, Márcia relembra o mestre, Fernando Pamplona:

“O Pamplona se valia muito da teoria das cores. Na época as escolas não tinham o número de componentes que tem hoje. Eram bem menores. Qual o efeito que ele tinha para fazer a escola parecer maior? Usava branco! O Salgueiro no início não tinha tanto vermelho, era predominantemente branco, com pitadas de vermelho. Aquilo dava uma volumetria.  Aqui nós temos a mata para retratar. Já fomos de uma escola verde, então temos o cuidado de não parecer tão verde. Nós temos um pedaço do enredo que fala do cauim, que é um vinho. Quando a gente vai entrar nesses tons mais avermelhados, a gente quebra essa passagem com um tom telha, do barro, da cerâmica. Com essa passagem as pessoas não vão sentir tanto o vermelho.”

É com esse olhar apurado sobre os detalhes que os carnavalescos abrem um novo capítulo em sua história de sucesso no maior espetáculo da Terra. Este ano à frente da Portela, contam ainda com um samba vigoroso, de poesia intensa, o que tem incendiado a comunidade, que movimenta os ensaios na quadra e nas ruas de Madureira. Uma energia que pretende acordar o público para ver a última escola da noite passar.

Não poderíamos nos despedir sem perguntar sobre o símbolo mais esperado dos desfiles da Portela: a águia altaneira. Apesar de manter o segredo, Márcia Lage manda um recado para os portelenses:

“Podem esperar uma águia com um diferencial. Eu gosto muito do resultado do que a gente vai propor.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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