Carnavalesco Jack Vasconcelos - Foto: Marilda Campbell/ Site Carnavalizados

Série Barracões 2020: “Na avenida, deixei lá a minha fala” – Para retratar Elza Soares, Mocidade prepara um desfile que tem muito a dizer

Quando em 1999 a rádio BBC, de Londres, elegeu Elza Soares como a cantora do milênio, não tinha noção do quanto a artista ainda poderia crescer até se tornar a “Mulher do Fim do Mundo”. Com uma voz inconfundível, Elza enveredou por novas experimentações musicais, aventurou-se por diferentes fases em duas décadas de trabalho, renovou seu público e, por conseqüência, recebeu homenagens dignas de uma deusa da música popular brasileira. Documentário, livro e musical foram algumas dessas iniciativas para reconstruir os passos da cantora. A homenagem mais aguardada, porém, ainda está por vir. Quando a Mocidade Independente de Padre Miguel abrir os caminhos para Elza passar, já na madrugada de terça-feira, todos vão se curvar a uma história de bravura e talento. Para entender os caminhos que a estrela guia da Zona Oeste pretende percorrer, a equipe do Carnavalizados visitou o barracão e teve uma deliciosa conversa com Jack Vasconcelos, que faz sua estreia como carnavalesco da agremiação com a responsabilidade de dar vida ao enredo mais desejado pelos independentes.

Uma expectativa que não o intimida. Vindo de uma temporada de sucesso à frente do Paraíso do Tuiuti, Jack demonstra a todo instante a satisfação de poder apresentar aos seus olhos a carreira e a vida dessa personagem icônica da música nacional. Assume, entretanto, que o mais desafiador do atual projeto foi manter um distanciamento das inúmeras interferências externas: opiniões e sugestões que colocariam em risco o desenvolvimento do trabalho.

“O mais desafiador e, também, o mais importante, foi me isolar! Manter distância das expectativas dos outros, porque isso atrapalharia muito o projeto. Eu procurei ao máximo isolar a minha cabeça e os meus ouvidos, para poder preservar a sanidade e fazer o que é preciso para as pessoas entenderem a Elza Soares.”

O que chama de desafiador, porém, faz parte do seu estilo criativo, sempre preocupado em se despojar dos conhecimentos prévios sobre o tema escolhido como enredo. É a forma que encontra de não estampar nos seus desfiles um olhar particular.

“Toda vez que eu vou fazer um enredo tenho que me despir ao máximo de qualquer coisa que eu já saiba sobre aquele assunto. É preciso zerar para não começar amarrado em nenhuma ideia. Um conceito pode ser desconstruído com a pesquisa e se eu não tiver essa disposição em reaprender eu não vou ser fiel ao que estou buscando. Eu vou fazer coisas só para mim, só com o meu ponto de vista. É claro que o público vai ver através dos olhos do artista, mas sempre procuro lembrar que eu estou me comunicando com os outros. Não me interessa fazer carnaval só com o meu gosto pessoal, ou um discurso que só agrade a mim. Uma escola de samba é alvo de paixão de muita gente. Eu estou representando essas pessoas. Tudo isso eu levo em conta.”

Quando o carnavalesco foi contratado já era público o tema que a Mocidade iria apresentar no carnaval de 2020. A aproximação entre a escola e o profissional foi, a partir daquele momento, o casamento perfeito entre um artista que vinha desenvolvendo projetos com uma postura crítica e um enredo em que o discurso contundente é inerente à história que precisa ser contada.

“Eu acho que faz sentido terem lembrado de mim para desenvolver o enredo, pelos últimos carnavais principalmente. Acho que pensaram em um artista que realmente saberia do que se tratava o tema. Muita gente ainda não entende a importância do discurso, leva para um outro lado. Para retratar a Elza era fundamental ter um artista com sensibilidade para entender a personagem, as passagens da vida e essas necessidades de fala que ela tem. Não é todo mundo que tem essa sensibilidade ou esse interesse artístico.”

Para o desenvolvimento do enredo, Jack Vasconcelos mergulhou em uma leitura intensa. Com longos anos de carreira, são incontáveis as matérias produzidas sobre a Deusa Soares. Mas o que de fato lhe conduziu foi a biografia lançada em 2018 pelo jornalista e escritor, Zeca Camargo. A orientação veio da equipe de Elza, que indicou o livro do apresentador por ter sido escrito a partir de depoimentos da própria cantora.

“A produção da Elza me orientou a ter como base o livro do Zeca Camargo, porque foi um relato dela. Este é o diferencial desse livro em relação aos outros materiais. Ele foi quase que ditado por ela. Isso tem um outro valor.  Mesmo assim eu fui ler um monte de entrevistas.”

A biografia de Elza Soares é repleta de dificuldades. Trechos da vida em que teve que lutar arduamente contra a fome, a pobreza, o racismo, a submissão da mulher, a violência doméstica, a morte dos filhos. Oprimida a todo instante por uma sociedade tomada de preconceitos, a cantora fez do seu corpo, sua voz, suas ideias e atitudes um espaço de resistência, para o qual resume: “antes de tudo, eu sou uma sobrevivente”. Sua trajetória pessoal, apesar do sucesso, vem preenchida de momentos de dor e de superação. Transformar isso em um desfile de escola de samba é, certamente, uma das grandes dificuldades em torno do enredo. Questionado sobre como dará a leveza necessária ao tema, Jack revela:

“Isso era uma preocupação que eu tinha desde o início: não errar a mão, não fazer algo fora do espírito do carnaval e, até mesmo, da Mocidade. Eu acredito que cada escola tem uma personalidade de desenvolver seus enredos e seus desfiles. Isso não seria condizente com a escola.

“Algumas passagens muito pesadas eu não via caber literalmente no desfile, se eu fosse fazer uma reprodução biográfica fiel. Mas nunca foi a minha intenção fazer um retrato de vida da Elza. Para mim, a referência biográfica serve como base para chegar na fantasia que a escola de samba pede. É preciso carnavalizar esses momentos e embasar com o discurso dela.

“Então, não esperem um enredo com uma narrativa biográfica clássica.”

Detalhes Barracão Mocidade Carnaval 2020 – Foto: Marilda Campbell/Site Carnavalizados

Detalhes Barracão Mocidade Carnaval 2020 – Foto: Marilda Campbell/Site Carnavalizados

Detalhes Barracão Mocidade Carnaval 2020 – Foto: Marilda Campbell/Site Carnavalizados

Mas a força e a superação estarão bem representadas ao longo do desfile. Com a prudência de não conferir às adversidades um papel relevante na vida e carreira da artista, pois o grande destaque não são os fatos, mas a forma aguerrida como Elza lida com os obstáculos.

“A gente fala dessa coisa da superação, mas com cuidado. Não podemos romantizar uma situação de penúria, de extrema dificuldade, ou romantizar a pobreza. Isso não é coerente. Tratamos da superação no sentido de falta de escolha: ou você enfrenta para sobreviver ou não sobrevive! Não existe uma escolha para ela. Não podemos entender que ela pode decidir entre ser heroína ou não. Sua única escolha é enfrentar: ir pra rua e arrumar dinheiro; arrumar emprego; comprar comida; comprar remédio para um filho doente…”

A maneira que Elza encontrou de desafiar os obstáculos foi através da sua voz. Não só pelo canto, mas pelo exercício do seu direito de fala, o poder do seu discurso, sempre e cada vez mais combativo por dias melhores. Permaneceu a todo instante nas trincheiras para atacar o racismo, a desigualdade e a violência contra as mulheres. Uma deusa que protege o feminino, que se esforça para resguardar suas companheiras de jornada. Essa politização do discurso tornou-se ainda mais evidente com os últimos discos lançados, diretos e corajosos. Sendo assim, não é uma opção à Mocidade falar da biografia da artista unicamente como cantora de sucesso. E isso Jack deixa claro quando perguntado sobre o tom crítico que pretende levar para a avenida.

“O discurso politizado está na prática da vida dela. Ela não é o tipo de pessoa que vai pegar o microfone e falar: ela vai dar exemplos. Os exemplos são as suas passagens de vida. Exemplos políticos, de resistência feminina, por exemplo.

“As coisas acontecem, ela enfrenta e realiza. Seja pessoalmente ou artisticamente. Logo, não tem como separar e falar da artista sem encarar o seu discurso, o lado crítico.”

Com os últimos trabalhos e a condução da carreira para um espaço de enfrentamento social, Elza renovou e rejuvenesceu seu público. Ao buscar essa nova trilha, entretanto, alguns amantes da sambista ficaram pelo caminho, resistentes ao novo estilo musical adotado. A essas pessoas Jack deixa um recado que ficará evidente ao longo do desfile:

“Esse público que resiste à nova fase artística se nega a olhar para a Elza do jazz; se nega a olhar para a Elza que cantou bolero, samba-canção, que foi crooner de orquestra. Ela não cantou só samba. Ficou muito conhecida pelo samba por causa das gravadoras, que a encaixavam num modelo. Quando, em outra fase de vida, ela consegue se libertar dessas amarras de grandes gravadoras, meio que volta ao início da carreira e começa a experimentar novamente outros estilos musicais. É uma artista extremamente versátil. Isso a gente fala também. Damos ênfase na Elza do samba, puxadora de samba-enredo – que é um setor inteiro nosso, aliás—, mas a gente também apresenta a versatilidade da cantora completa que ela é.”

Para contar uma história tão rica e fazer jus à homenageada, a Mocidade prepara um desfile com cinco alegorias, um tripé e muitas surpresas. As características artísticas de Jack Vasconcelos ficam claras na leitura, com um arrojo na linguagem que ele define como fruto do enredo retratado.

“É um projeto que tem um compromisso com a história, é adequado ao tema. A gente não está jogando arte decorativa para as pessoas só olharem. Tudo tem um porquê e o público vai entender na hora. Não existe a possibilidade de apresentar a história da Elza Soares com a linguagem do luxo tradicional que se espera de uma escola de samba. A história de vida dela e a postura como artista e como pessoa pedem um arrojo, pedem um experimento. Não tem nada de tradicional na Elza!”

Assim como não tem nada de tradicional na personalidade da Estrela Guia de Padre Miguel. Reconhecida como uma escola inovadora, a Mocidade é o ambiente ideal para experimentar a coragem de Elza Soares.

 “É um tema que faz todo sentido estar aqui. A Elza é a cara da Mocidade, de verdade. É uma mulher que nunca foi ligada a passado: ela vive o presente, olha para frente.”

Quinta escola a desfilar na segunda-feira de carnaval, com o enredo Elza Deusa Soares, a Mocidade vai entrar na Marquês de Sapucaí para relembrar os grandes momentos da vida e obra de um ícone da MPB. Se Elza pegar o microfone certamente vai inflamar as arquibancadas com um pedido já tradicional em seus shows: “EU QUERO GRITOS!”

Como diz uma das músicas da mulher do fim do mundo, “na avenida dura até o fim”.

 

 

 

 

 

 

 

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