Parceria campeã - Final de samba Estação Primeira de Mangueira - Foto: Fernando Tribino / Carnavalizados

Para os Livros Empoeirados, Novos Versos: Mangueira Elege Samba de Domênico para Cantar o Brasil que não está no Retrato

A Estação Primeira de Mangueira, para quem é alheio à história do samba e sua relação comunitária, é a escola mais identificada com um morro/favela/comunidade. No Palácio onde a nação verde e rosa escreve suas leis, o preto, pobre e favelado, habituado a ser deixado de lado, reescreveu seu destino: tornou-se poeta, vestiu-se de brilho, virou artista, conquistou o mundo, invadiu as colunas sociais. Seduziu e convidou para seu universo a nobreza. E ela se rendeu, delirou nos versos e na cadência de um surdo solitário de primeira. E foi assim que o reduto da zona norte expandiu seu território, rasgou os registros oficiais e entrou no roteiro cultural brasileiro.

Mas o poder de uma nação não se mantém por páginas amareladas de uma história passada. É preciso olhar para frente, se reinventar. Eis que começa uma nova estória: era uma vez um jovem chamado Leandro Vieira. Leandro circulou por algumas escolas. Foi figurinista e assistente artístico até virar carnavalesco da Caprichoso de Pilares em 2015. Venceu a crise da agremiação e colocou na rua um belíssimo desfile. Lá pelas bandas de Mangueira estavam de olho naquele jovem rapaz. Em um gesto de ousadia, uma das mais tradicionais bandeiras do carnaval apostou no novo. Sem medo de errar, mergulhou de cabeça na mente brilhante de um artista em construção. E já em seu primeiro ano ele foi o empreiteiro campeão de uma obra irretocável em homenagem à dama da MPB, Maria Bethânia.

Leandro Vieira não parou de (re)criar. Em 2018, fez da Sapucaí a Cinelândia para o seu manifesto contra o corte de verbas do carnaval promovido pela prefeitura do Rio em uma tentativa de limitação da liberdade de brincar, sonhar e ser feliz. Apesar da beleza indiscutível dos dois desfiles anteriores que realizou na Mangueira, talvez seja o último o mais próximo àquilo que acredita: o samba como caixa de ressonância do mundo à sua volta. E é com essa aposta e confiança do presidente, diretoria e comunidade que o carnavalesco traçou um enredo autoral brilhante, que propõe virar as folhas desgastadas da história oficial do nosso país, para descobrirmos que embaixo delas, suprimidas por personagens, preconceitos e pelo tempo, residem outros contos de luta, dor e vitórias.

“História para ninar gente grande” vem para dizer que por traz de uma nobreza “heróica” existem os esquecidos, rejeitados. Os índios que aqui estavam, mas não foram descobridores; a independência por novas lentes; a abolição nunca contada; os verdadeiros heróis à frente de cada batalha diária pela sobrevivência e união nossa como sociedade. Cuidado que a Mangueira vem aí, trazendo a história que a história escondeu. Um enredo de difícil execução dado o grau de pesquisa que exige, mas de uma inteligência admirável.

O caminho de sucesso dessa nova empreitada segue iluminado pela sensibilidade de outros artistas, compositores que puseram à prova suas obras na noite do último sábado (13). O Palácio do Samba recebeu os apaixonados pela Mangueira para a escolha do canto que há de despertar tantas vozes, caladas ao longo dos mais de quinhentos anos de uma terra chamada Brasil.

Três sambas chegaram a uma das finais mais disputadas do ano. Parcerias compostas por:

– Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino;
– Lequinho, Junior Fionda, Gabriel Machado, Alemão do Cavaco, Gabriel Martins e Wagner Santos;
– Hélio Turco, Partidinho da Mangueira, Sérgio Gil, André Luis, Bel da Uerj e Fernando do Chalé.

A divisão da comunidade entre as duas primeiras esteve clara durante todo o período de corte, sendo elas as mais esperadas da noite. O anúncio veio para coroar o desejo do público. Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino, com um samba que foge à estrutura tradicional, fazem a Mangueira mais uma vez apostar no novo, mais empenhada em demonstrar uma superioridade poética do que técnica a um grupo de jurados.

O samba campeão assumiu por completo o espírito do carnavalesco ao iluminar histórias apagadas. Foi além do passado distante e trouxe para o palco a vereadora Marielle Franco, vítima de um crime político há exatos sete meses. Um ar de modernidade que atende a vontade do público por ver sua realidade retratada, o que foi comprovado com o sucesso dos desfiles críticos de 2018.

“Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”

A citação de Marielle despertou uma certa polêmica. Nas redes sociais e em matérias veiculadas pela imprensa, encontramos alguns comentários de rejeição a tal posicionamento como uma bandeira partidária. É preciso entender diante de tal discurso que antes de vereadora existiu ali uma mulher, massacrada por seus ideais e pelo seu trabalho, concorde ou não com o que ela propunha. Retirada das páginas oficiais da câmara como foram retirados tantos outros dos nossos livros e lembranças. Sempre para dar lugar a um herói dito inabalável, seja por sua fala, suas roupas e costumes.

O hino escolhido na Mangueira traz um ar de frescor, uma renovação ao universo do samba enredo que passou um tempo distante do seu lugar de representatividade social. Como eternizou Zé Keti, o samba é a voz do morro, voz de todos nós. E esse veio para colorir o carnaval em um verde e rosa vibrante, que há de nos lembrar as cores que deixamos de notar em nossos livros amarelados.


Confira a letra do samba da Estação Primeira de Mangueira para o carnaval 2019:

Compositores: Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino

Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra

Brasil, meu dengo
A mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato

Brasil, o teu nome é Dandara
Tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês

Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões
São verde e rosa as multidões

Confira momentos da festa:

Final de samba Estação Primeira de Mangueira – Foto: Fernando Tribino / Carnavalizados

Parceria campeã – Final de samba Estação Primeira de Mangueira – Foto: Fernando Tribino / Carnavalizados

Final de samba Estação Primeira de Mangueira – Foto: Fernando Tribino / Carnavalizados

Final de samba Estação Primeira de Mangueira – Foto: Fernando Tribino / Carnavalizados

Final de samba Estação Primeira de Mangueira – Foto: Fernando Tribino / Carnavalizados

Rainha de Bateria Evelyn Bastos – Final de samba Estação Primeira de Mangueira – Foto: Fernando Tribino / Carnavalizados

Final de samba Estação Primeira de Mangueira – Foto: Fernando Tribino / Carnavalizados

Final de samba Estação Primeira de Mangueira – Foto: Fernando Tribino / Carnavalizados

 

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