Carnavalesco Jack Vasconcelos - Foto: Pablo Sander / Carnavalizados

Barracões 2019 – Paraíso do Tuiuti: “Isso Aqui iô iô é um Pouquinho de Brasil”

Da Série Barracões 2019 – Paraíso do Tuiuti

Quem caminha atento pela Cidade do Samba ouve alguns berros malandreados. Relatos indicam que circula por ali um bode sem medo de censura. Ioiô é assim, vai e vem sem modos nem cabresto. Frequenta todo tipo de ambiente e não liga se as regras foram feitas para lhe manter à margem. Ele é o centro! Curiosos, fomos atrás do “bichim”. Encontramos um amigo seu, o carnavalesco Jack Vasconcelos, que com sua simpatia contagiante nos contou um pouco da história do bode homenageado pela Paraíso do Tuiuti neste carnaval.

O Salvador da Pátria é o enredo que a escola de São Cristóvão vai defender na segunda-feira de carnaval. Através dele vamos desvendar um pouquinho de Brasil. Das relações de poder, da desigualdade e exclusão social, da supressão da cultura popular. Politicamente correto?! Longe disso! Ioiô é puro deboche. Ri daqueles que tentam se livrar do seu cheiro, mas que não conseguem fazer da perfumaria artifício suficiente para apagar suas origens. E é este tom de sarcasmo que a agremiação vai imprimir do início ao fim do seu desfile. Um pouco disso pode ser visto no último domingo, durante o ensaio técnico, quando os bailarinos da Comissão de Frente distribuíram laranjas ao público, uma referência às notícias que estampam os jornais diariamente. A comunidade cantando empolgada um samba para cima, zomba das tentativas de encurralar a voz do povo. E nesse baile que conjuga história e ironia, a Tuiuti vai fazer a festa.

Ao ser questionado sobre possíveis preocupações com a aceitação do tema escolhido em um momento político marcado pela polarização do discurso, Jack é categórico:

“Estamos em um momento muito raivoso. As pessoas estão com raiva de tudo. Nenhum assunto é conversado de maneira saudável. Este enredo é meio uma resposta a isso. A gente trata isso de uma maneira bem humorada. É, inclusive, uma resposta ao que eu e algumas pessoas da escola passamos no ano passado.

Nós sofremos agressões verbais e ameaças. E vamos responder a isso com humor.

O carnaval de 2018 e a proporção alcançada foi um marco na história da Paraíso e do carnavalesco. Sobre a inspiração para um novo tema que pudesse manter a qualidade do trabalho, Jack declara que “ao pensar no próximo enredo, queria algo mais leve, que fosse para o humor, que atualmente é a única ferramenta de entendimento mínimo entre nós. O diálogo está cada vez mais limitado entre as partes opostas”. Esse foi o seu ponto de partida.

E revela:

“O que mais me seduziu em poder contar essa história foi ela me dar liberdade poética; me trazer essa fábula em que eu posso falar de coisas importantes sem ficar chato. Sem despertar olhares de ‘lá vem aquele cara, reclamando de tudo, reclamando da vida’. Você não é ouvido reclamando. Você não consegue atingir as pessoas. Pode estar certíssimo, falando para o bem delas, mas não vão te dar atenção. Eu não quero me tornar esse ‘cara do discurso chato’.”

O enredo construído tem muito do carnavalesco. Jack tem um humor inteligente, irônico e gostoso de dialogar. Tudo a ver com o projeto que nos apresentou em sua sala na Cidade do Samba. Sobre a responsabilidade em manter o nível do último ano, diz não ter sentido qualquer peso sobre a nova proposta: “pode parecer egoísta, mas eu queria fazer algo que fosse muito divertido para mim. E eu estou me divertindo, estou muito feliz de fazer. Eu estou de corpo e alma neste enredo”.

A história de Ioiô começa a ser contada a partir de uma grande seca que atingiu o Ceará em 1915. Para retratá-la, Jack Vasconcelos usa o olhar do retirante. “Não é retrato de seca, é uma coisa mais sensorial, do que ela provoca, de calor, penúria, sede. Esse delírio que eu criei por conta da seca é inspirado nas pinturas de um artista cearense, chamado Chico da Silva. O que me despertou atenção foram as cores vibrantes que ele usa e a inversão do claro e do escuro nas telas”.

Com a seca vem a fome, os retirantes e o Alagadiço. Segundo nos conta o carnavalesco, “o Alagadiço é um dos primeiros campos de concentração que se tem notícias no Brasil. O governo da época achou por bem concentrar essa multidão antes que eles atingissem a cidade, para não chegarem ao mesmo tempo causando algum tipo de problema, de violência. Não era para matar ninguém, como outros campos de concentração que a gente conhece, mas de qualquer forma não é uma coisa bacana”.

No meio desses retirantes vem Ioiô. O bode foi vendido a uma empresa de comércio de peles e acabou se tornando uma espécie de mascote dela. O segundo setor do desfile mostra, então, essa chegada do animal a Fortaleza, onde vai morar na avenida Dragão do Mar, na beira da praia conhecida hoje como Praia de Iracema. “Eu queria muito mostrar o choque de ambiente que esse bode passou. Ele sai de um sertão, uma realidade diferente, e vai viver de frente para o mar. É uma reviravolta muito radical na vida”.

Dali em diante ele começa a desvendar a cidade. “O primeiro contato que tem com as pessoas na praia de Fortaleza é com os pescadores, os trabalhadores. Depois ele começa a sair à noite da fábrica para passear. É onde vai encontrar com os boêmios e os poetas da época. Quando anoitece ele sobe a rua e vai para Praça do Ferreira atrás das serenatas, das serestas, dos mafuás, das marafonas. Vai aprontar! E o bode vira realmente uma figura folclórica daquela cidade. Ele é acolhido pela população”. Esse bode mais noturno, malandreado, com clima boêmio da rua, também vai compor o desfile da Tuiuti.

Atrás dele vem a Belle Époque e o afrancesamento dos trópicos. Período em que as cidades buscaram uma reformulação urbana. Na esteira do processo de modernização, a habitação e o estilo de vida foram fortemente atacados. A política de higienização destruiu as casas mais humildes e empurrou os mais pobres para a periferia de Fortaleza.

Nesta fase foi construído o teatro José de Alencar, mais um ponto que o bode costumava frequentar e assistir as apresentações. Praças foram modernizadas, projetos paisagísticos desenvolvidos, instalação de iluminação pública executada e a abertura do Cine Moderno: “dizem que o Ioiô inaugurou este primeiro cinema na Praça do Ferreira na frente do prefeito, porque ele pegou a fita inaugural e comeu”, diverte-se Jack.

Com o aformoseamento das ruas vieram as proibições. A Praça do Ferreira, em frente ao Teatro José de Alencar, era um ponto tradicional de manifestações da cultura popular, o que passou a ser coibido com a sua remodelagem. O mesmo processo de proibições se estendia por onde caminhava o “progresso”, pois o popular era visto como primitivo e a elite queria apagar suas origens. “A gente trata esse pessoal querendo ser chique de forma caipira. Não vai ser né, amor!”, brinca o carnavalesco.

Em meio a todo esse processo, o bode Ioiô virou resistência. Sua presença na cidade lembrava as raízes sertanejas em meio à moderna urbanização. Lembrava todos aqueles que tinham sido empurrados para o interior por não se encaixarem no modelo afrancesado de comportamento.

A insatisfação popular com as novas regras e com a classe política dominante faz do animal uma nova liderança, uma forma de demonstrar o descontentamento com os governantes. E assim, Ioiô é eleito vereador, um representante do povo em meio àquele poder excludente. Nas palavras do carnavalesco, Jack Vasconcelos:

“Ele é um exemplo de como a gente pode se comportar nas adversidades. Ele virou esse ícone de resistência da cultura popular, underground; da população que vive em situação de vulnerabilidade. Ele foi abraçado por essas camadas, que vão ser homenageadas no último carro, que é o bode Ioiô como símbolo de resistência.”

O último setor, aliás, promete muito deboche, fazendo a farra com o dinheiro público e tratando o povo como boneco de trapo. O resultado disso é a insatisfação popular que faz do bode um baluarte em defesa da sociedade.

Sobre o processo de construção do enredo, Jack revela o quanto sua ida ao Ceará foi fundamental para entender todo o processo de aceitação e ascensão da imagem do animal que virou símbolo de uma cidade:

“Eu tive uma surpresa muito grande quando cheguei lá. Eu li uns livros, pesquisei umas coisas na internet e saí daqui com o enredo todo rabiscado, achando que ia chegar e confirmar minhas pesquisas. Mas quando eu cheguei lá, fui completamente desconstruído. Eu vi o tamanho do bode, o tamanho da importância que ele tem para as pessoas. Voltei desesperado para escrever e reformulei o enredo inteiro, porque aquilo que eu tinha era muito pobre, muito raso. Eu tinha que ir lá, ouvir as pessoas, as expressões, ver a cor do lugar. Eu fotografei tudo: o pôr do sol, a cidade, as pessoas. Comi, bebi. Tem que fazer isso: sair do pedestal e conhecer, viver a situação. Não adianta ler as coisas de uma sala com ar condicionado. Eu tinha que passar a alegria, o amor dessa gente, de alguma forma no enredo. O enredo era muito mais careta, mais boboca. Era mais chato.”

Sobre desfilar logo após a União da Ilha, que vai fazer uma grande homenagem ao estado do Ceará, o carnavalesco não vê como um problema:

“Não conheço o outro projeto, mas o meu desfile deixa o Ceará. Ele acontece no Ceará, mas eu estou falando para o Brasil todo. O nosso tema é nacional, bem mais amplo: não é um recorte de lugar. Então eu acho que a gente tem propostas muito diferentes. Além disso, eu estou só em Fortaleza, não faço um passeio pelo estado. Também não é uma Fortaleza romantizada que a gente está acostumado a ver. Ele está sendo tratada como a cidade desenvolvida que é, sem o olhar folclórico e exótico que normalmente nós jogamos sobre o nordeste.

O enredo é o Brasil, que ainda não se livrou dos coronéis. O poder que sempre soube se atualizar para se manter. Falamos um pouco disso ano passado e este ano voltamos com mais força mostrando esse poderio das famílias, dos grandes coronéis, pecuaristas, do agronegócio. Isso tudo vai estar ali!”

E com esse gostinho de curiosidade, temperado por bom humor, ironia, inteligência, provocação e muita cultura popular, nos despedimos de Jack Vasconcelos com a expectativa de nos divertirmos muito com o enredo necessário que a Tuiuti vai desenvolver na passarela do samba.

Confira as imagens dos bastidores do Paraíso do Tuiuti 2019:

Barracão Paraíso do Tuiuti 2019 – Foto: Cristina Frangelli / Carnavalizados

Barracão Paraíso do Tuiuti 2019 – Foto: Cristina Frangelli / Carnavalizados

Barracão Paraíso do Tuiuti 2019 – Foto: Cristina Frangelli / Carnavalizados

Barracão Paraíso do Tuiuti 2019 – Foto: Cristina Frangelli / Carnavalizados

Barracão Paraíso do Tuiuti 2019 – Foto: Cristina Frangelli / Carnavalizados

Vitor do Vime – Barracão Paraíso do Tuiuti 2019 – Foto: Cristina Frangelli / Carnavalizados

Barracão Paraíso do Tuiuti 2019 – Foto: Pablo Sander / Carnavalizados

Barracão Paraíso do Tuiuti 2019 – Foto: Pablo Sander / Carnavalizados

 

 

 

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